30.12.09

Brisa de uma inspiração

A beleza estava naquelas palavras,
Vindas de uma mente indecifrável.
Espertas como quem nasce ao contrário
E mantém uma postura errada.
Pelo resto de uma vida
Cheia de significados.

4.11.09

A cerca

Quando a casinha de madeira rústica silenciou e juntou-se à escuridão da mata que a cercava, Olivia remoía uma vontade. Do seu quarto, esticava os pensamentos até aquele celeiro velho onde estava Mundão. É que Mundão era um desses, inesquecíveis. À primeira vista já se via que nascera para marcar. Era grande, muito maior que Olivia, e era tão preto que à noite não se via.

Os pezinhos balançavam ao ritmo da ansiedade, que ora era frenética, ora era quase sonolenta. Aquela era uma dessas vontades que não a deixariam dormir. Ela poderia revirar na cama, amassar o travesseiro e até tentar a rigidez do chão; nada tiraria Mundão de sua cabeça.

Tinha que vê-lo. Afastou o lençol, desenroscou as pernas e pousou os pés no chão, descalços. Sabia que se sua mãe a ouvisse sair, levaria castigo pesado, porque o breu da mata era perigoso; e perigo e mãe nunca eram boa combinação. Então, se aproximou da janela aberta do quarto.

Olivia gostava da brisa da noite, lembrava-lhe as histórias do avô falecido. Para sua surpresa, quando olhou para fora não viu apenas mato. Mundão, antecipando seu desejo, já se postava enorme à sua espera. Ao vê-lo, Olivia se apressou para sair, ligeira como poucos poderiam imaginar.

Da janela, pulou direto para o lombo de Mundão, que a segurou firme. Ele era forte, os músculos palpáveis sob a pele e Olivia gostava disso. Ela deitou-se inteira para poder agarrar a crina grossa e embaraçada e travou os calcanhares nas laterais. Sabendo o que fazer, Mundão começou a andar em direção aos campos.

A velocidade aumentava rápido, como estavam acostumados. A mãe temia que um dia sua caçula caísse e batesse a cabeça; pai não confiava no garanhão negro como a noite. Olivia sabia que nas costas de Mundão tudo era possível. Cavalgavam, abraçados como um, explorando os campos como aventureiros desvairados. Quando ficava muito rápido e Mundão atingia o limite dos cascos duros e pernas de campeão, Olivia se agarrava tanto à crina que chegava a enfiar seu rosto nela, gritando de excitação. O cheiro era de pêlo selvagem, de celeiro, de pasto sujo, de Mundão, de liberdade.

Cavalgar à noite era gostoso, a única luz nos olhos era aquela suavidade da Lua. Andaram pastos, matos, todo terreno do pai. Circundaram a casa, sem medo de acordar alguém. Eram corajosos quando estavam juntos.

Quando terminaram de explorar tudo, Mundão foi diminuindo a velocidade, o que decepcionou Olivia. Ela queria mais, nunca conseguiria dormir com o coração pedindo por mais, mais, mais. Mesmo Mundão queria e procurava. Até que, ao longe, viram a cerca que marcava os limites dos hectares. Ficaram parados por um segundo, vendo além dela os terrenos sem fim, inexplorados.

Mundão se afastou, como se calculasse os metros necessários. Olivia sentiu a pulsação acelerada nas mãos que apertavam a crina. "O pulo mais alto do mundo", ela sussurrou. Ele disparou, como nunca fizera antes.

Era tão rápido que Olivia teve medo de não se agüentar. Então segurou forte, muito forte, mesmo sabendo que seu corpinho já entortava para um dos lados e era lançado muito acima do lombo de Mundão quando ele dava uma passada mais forte. Só que ela não desistiria, agora que estava tão perto da cerca. E ele pulou.

Ambos pairaram sobre a cerca, a ascensão foi forte e Olivia estava feliz porque ainda se segurava. Os olhos estavam fechados, da força e do medo. E continuaram assim, porque ela sabia que o choque com o chão não seria mais fácil. Quando abriu os olhos finalmente, viu as árvores e as cercas ficarem pequenas logo abaixo. Mundão não cavalgava mais, voava para a Lua esbranquiçada.

A brisa foi ficando mais fria e Mundão não parou. Teriam que chegar a Lua. E, por algum motivo Olivia soube: Adeus.


Não foi por escrever, foi por desabafar.

9.9.09

O Dia de Augusto

Havia apenas uma fresta de luz entrando pelo descuido das cortinas verde-musgo, forte o suficiente para chamar Augusto de um sono de meio da tarde. Os olhos abriram lentamente, o esquerdo algumas frações de segundo mais demorado que o direito, e piscaram para iluminar parcialmente o azul-piscina que se escondia por trás das pálpebras marcadas. A sala, escura e densamente empoeirada, repousava em silêncio tenebroso para guardar imutável um cenário há muito abandonado de qualquer movimento, convivência, vida.

Augusto descansava na poltrona de couro marrom. Tinha os óculos de leitura despencando do nariz ensebado e metade de um jornal no colo, enquanto o resto dele cobria alguns centímetros de chão à sua frente. Tão bem acomodado como estava, deu um longo suspiro preguiçoso enquanto desafiava com um olhar compenetrado a folha de jornal mais distante. Ela estava além do alcance de seu braço, mesmo que fosse um jovem no ápice da funcionalidade de seus músculos e articulações.

Estava abafado e Augusto vestia o colete cuidadosamente tricotado por cima da camisa branca. Calça, meia e sapato, para combinar. Estava abafado. O facho de luz furtivo atravessava o vidro espesso da janela, trazia um calor ardido e o aprisionava em um cômodo trancado. Mas Augusto não abriu a sala para deixar escapar ou entrar qualquer coisa. Ainda mirava a folha de jornal.

Ao momento que resolvera se levantar, a luz já atingia o porta-retrato de prata, fosco pela degradação, em que a mulher emoldurada tinha o sorriso comedido das boas moças dos anos 50. Com algum esforço, Augusto desperdiçou alguns passos até as folhas de jornal dispersas enquanto arrumava o aro no rosto, para enxergar melhor. A Economia se entrelaçava à Política que não poderia estar mais distante do Entretenimento. Os Anúncios mediavam o espaço entre os dois, como o território neutro. Augusto suspirou novamente, os ombros desabando para frente como um impulso inicial.

O corpo frágil se dobrou debilmente sobre a barriga sobressalente, criando um obstáculo a se adicionar às vértebras estalantes. As pontas grossas dos dedos enrugados se esticaram na tentativa dolorosa de ao menos encostar nas folhas travessas, para o que lhe faltava menos que milímetro quando desistiram e se dobraram em garras rígidas. Em meio aos sulcos bem marcados, os olhos apertaram-se em sinal de resistência que suas pernas, bambas, não assumiram. O corpo caiu de lado ainda dobrado, em irônica posição fetal. O grito rouco de dor não foi suficiente para sequer encher a sala cerrada, muito menos para transpor portas e janelas trancadas.

Quase não se completava nem dois minutos de batalha, quando Augusto fraquejou os membros e tinha os olhos semi-abertos, atentos ao holofote que atravessava a sala, passava bem por cima de sua poltrona e apresentava a boa moça sorridente da prata envelhecida. A expressão facial não era mais capaz de mudar, os olhos azuis, no entanto, tinham um brilho incomum. O último sinal de vida que aquela sala haveria de abrigar.

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O caixão preto desceu à cova sem muitos espectadores. O filho bastardo, único herdeiro de um império nada, pagou um enterro minimamente digno para um pai ausente. Ainda fez questão de manter o colete tricotado sobre a camisa branca, lhe dar uma farta coroa de flores e guardar no bolso do defunto a foto de uma moça dos anos 50 – que não era boa, nunca esteve emoldurada em prata e lhe dera o único filho que tivera em vida.

27.7.09

Estranha relação de Petrônio.

- Mas é claro que você é linda.
A flor manteve-se irredutível.
- Uma pétala a mais, outra a menos... Você continua maravilhosa.
Era um dia daqueles, que ela olhava pela janela e via o jardim do vizinho.
- Não, querida, você está ótima. É a mais linda.
.
- É sim. - estava ficando irritado.
.
- Estou falando a verdade!
.
- Você quer o quê? Que eu diga que ela é mais bonita?
Ele odiava que ela duvidasse de sua palavra.
Quando saiu, porque sabia que ela não iria ouvi-lo de qualquer maneira, pensou que talvez um rosa não lhe desse tanto trabalho.

7.7.09

O Casamento

Foi um vento traiçoeiro que levou o véu da noiva para muito acima do que o homem mais alto da festa poderia alcançar. Em lufadas breves, como de quem provoca uma brincadeira muito sem-graça, levantou e levantou e levantou, e sem pudor em seus limites, soprou uma última vez para perdê-lo lá no meio da floresta.

Mas Francine não poderia deixar. Um moça bonita andava para seu final feliz, ao longo de um tapete de veludo vermelho com seu vestido de rendas branco, exatamente como dizia em seu livro favorito. E nenhum vento tinha o direito, por mais brincadeira que fosse, de interromper o momento mais importante daquela história.

Então, obstinada, correu para além do que seus sapatinhos apertados permitiam aos seu pés e esticou os braços tão longe, que pensou tê-los sentido aumentar alguns metros (ou seriam centímetros?). Não, o vento não iria vencer. Mesmo ofegante, quase não aguentando mais o entra-e-sai de ar de seu peito, Francine não diminuiu a velocidade. Ela correu mais do que naquele dia em que competiu com a Marília - aquela metida. Correu mais do que no dia que o cachorro do vizinho quis roubar seu sanduíche de mortadela e provavelmente alguns de seus dedinhos também. Mais do que quando seu pai chegou de uma viagem longa com um embrulho enorme de presente.

E mesmo assim, mesmo colocando toda força de seu corpo nas perninhas curtas, herança genética de sua mãe, mesmo dando de si mais do que nunca deu em uma corrida, o vento voava alto demais. Ele roubava, não sabia brincar dentro das regras que as crianças combinavam antes do jogo. Francine até deu pulinhos para ganhar alguns metros de distância, sabendo que também roubava. Até que os joelhos obrigaram-na a parar. Até que ela caiu em cima de grama, ainda olhando o véu branco ser soprado para bem, bem longe. E enquanto ela tristemente o observava fugir e planar muito mais alto que o avião que sempre levava seu avô no fim das férias, desconfiou que talvez tivesse se enganado. Que talvez o vento não estivesse mesmo brincando...

30.5.09

Momento II.

Não eram mais almas famintas. Ou pensavam que não.

Até que um dia, num daqueles jantares frígidos cheios de assuntos tediosos sobre os quais ninguém queria mesmo conversar, ela derrubou sua macarronada bem em cima dele com o movimento da mão distraída.

Foram segundos de silêncio, não porque ele ficava bravo e ela esboçava um pedido de perdão - algo que nenhum dos dois fazia há muito tempo. A familiaridade da cena fez com que ambos se olhassem nos olhos, outra coisa que raramente faziam ultimamente, o que os chocou, tão repentinamente. E sorriram.

- Oh, não é sua calça favorita, né? - disse ela, as exatas mesmas palavras de 20 anos atrás, quando estava em um primeiro encontro que a levaria ao altar.

- Mas é claro que não. - respondeu ele, sabendo que há 20 anos trás era sua calça preferida que vestia, mas nunca admitira.

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17.5.09

Momento.

Agora, todas as vezes que se cruzassem, lembrariam de um momento terno, sorririam em alegria saudosa e sentiriam vontade de dizer um comentário qualquer sobre o tempo nublado, para que tivessem a atenção um do outro. Ela desejaria que ele se oferecesse para carregar seus livros; ele esperaria por um abraço, um beijo ou que fosse um sorriso de carinho.

E cada pequeno momento desses alimentaria daquela forma quase, mas não satisfatória, duas famintas almas apaixonadas.

8.5.09

volta.

Disse a menina de olhos tão escuros como dois velhos poços secos que se arrastaria fugaz pelas sombras dos rodapés enquanto se alimentaria dos segredos que fossem lá jogados, para serem esquecidos. Para que não fossem esquecidos, para que se conservassem num estado permanente de vergonha em um antigo álbum usado.