22.4.10

Reparação

Menina Julia é uma estrelinha de 12 anos, favorita de mãe e de professora. Sempre fantasiou sua vida adulta naquele ponto alto: ganhando seu dinheiro, dona da sua própria casa, amada por um marido carinhoso e mãe de um filhinho precoce que já sabe soletrar. Sonha em ser heroína da família grande e de várias crianças carentes. E jamais vai perder a humildade - aquela que ganhou de sua origem. Afinal, se nasceu na comunidade, para sempre será da comunidade.

Tão puro é o coração da menina, que talvez essas coisas se concretizem mesmo. Então Julia vai ser aquele exemplo de mulher guerreira, que ajudou um mundo de gente e tem sua biografia escrita em formato best-seller. Talvez vire alvo de um repórter europeu que busca uma história tocante do país de terceiro mundo e tenha sua vida narrada em francês. E quando morrer de velhice, aos 97 anos, vai virar manchete de jornal burguês.

Fica, no entanto, a questão: Mesmo que um escritor famoso consiga florear essa narrativa e transforme-a em um clássico que seja traduzido para todas as línguas conhecidas; mesmo que Julia se torne um nome tão imortal quanto Romeu ou Julieta; mesmo que todas as testemunhas de sua história original já não existam, nem possam esclarecer os erros dessa continuação romanceada, algo muda sua realidade?

Pode, Briony, um erro ser reparado por um ato tão passivo?

Não é o leitor que não se satisfaz com um final caótico, mas sim o Senhor Absoluto de um Universo minuciosamente controlado.

Só ele e todos os seus pedaços coordenados.

7.4.10

2.4.10

O Vestido

Quando puxou a cortina bege de lado, algo pinicava em um lugar inalcançável do braço direito. Quatro rostos se iluminaram, colocando-a no centro das atenções. Suas melhores amigas, sua irmã e sua mãe, esta última à beira de lágrimas.

Havia um banco no centro de três altos espelhos e uma moça baixa aguardando com a fita métrica pendurada no pescoço. Ela sorriu de leve e lhe estendeu a mão, para ajudar a subir no banco sem rasgar o vestido. Claro, o vestido.

O alvo branco brilhou em um raio de Sol que entrava pela janela. O tecido escorria liso até o chão mesmo contando a altura do banco e, nos seios, pequenas flores subiam bordadas pelos cantos, ornadas com contas peroladas. O tomara-que-caia valorizava muito bem seu colo e fez as quatro espectadoras suspirarem.

À sua frente, três imagens oscilavam, vestindo seu vestido, balançando seu véu, mascaradas com sua maquiagem. Eram lindas, as três, tanto quanto diferentes. A primeira, que mostrava o ângulo direito do vestido, achava-se fabulosa. Sorria em plena felicidade e ansiedade. Era a pura, menina virgem, cheia de sonhos, planos e antecipações.

A segunda, do meio, era a que a encarava diretamente nos olhos. Era questionadora, séria e rígida, como uma professora zangada. Parecia julgá-la com superioridade, cheia de dúvidas sobre aquele lugar em cima do banco. O que aquilo significava? Os rostos chorosos, sorrisos largos, gritinhos de excitação? O que significaria, afinal, tanta emoção? Um vestido, símbolo de quê exatamente?

A última, da esquerda, era radical. Fantasmagórica, transbordava raiva e rancor. Odiava seu lugar dentro do vestido cerimonial, o corpo sufocado por um momento vazio. Cuspiria na cara emocionada da mãe, da irmã, das amigas. Sairia nervosa em direção à rua e jamais voltaria. Não em sã consciência.

A ocasião se passou em meio a comentários românticos, às vezes amargos, às vezes invejosos. As mulheres juntas tendiam a falar de homens e da vida alheia. A festa por vir as encantava tanto que as deixavam tagarelas mesmo nos momentos em que os assuntos morriam. A costureira trabalhava sem parar em detalhes invisíveis.

- Você é a noiva mais linda.

Ela sorriu, de costume. Deu uma volta, para encerrar o show. Quando saiu do vestido – com cuidado, é claro – se viu sentindo apenas uma coisa: alívio por se livrar da pinicada no braço.

Mais tarde, quando a agenda do dia havia acabado, pôde encontrar Diego na entrada do barzinho favorito. Ele lhe sorriu, daquele jeito que a conquistava toda e cada vez, e ela o abraçou. Forte o suficiente para saber que não queria se casar. Não queria o casamento.

Era aquele abraço: quente, apertado, íntimo. Era ele que satisfazia a menina sonhadora, calava a ansiedade questionadora e acalmava seu lado mais radical. Era ele, e somente ele que fazia qualquer sentido.

Mais nada.