15.10.11

Charlotte

O quarto era um típico cômodo de hotel barato: quadrado e pequeno, sujo, paredes de cor indefinida, descascadas, e chão revestido de um carpete marrom e malcheiroso. A cama era um colchão velho e fedido encaixado sobre quatro pés de alumínio, que resistiam por teimosia. Sua molas rangiam ao menor movimento e calombos duros cobriam toda a sua superfície.

João Miguel estava estirado em meio ao lençol amarrotado, ainda extasiado pela força de seu gozo. A moça reforçava a maquiagem preta dos olhos em um dos cantos do espelho manchado. Nua, exibia os poucos atributos. Peitos achatados, cintura reta, nádegas pequenas. Disfarçava-os muito bem com as roupas de mulher fatal. Seus trejeitos, bem treinados, poderiam enganar os olhos mais experientes. Não deixava, porém, de ser linda. Ainda que insistisse em cobrir o rosto com toda aquela maquiagem, podia-se notar a delicadeza de seus traços.

- O que você diria se eu pedisse para você casar comigo?

Ela riu sem voltar-se para ele.

- Eu diria não.

- Casa comigo.

- Não.

João não se abalou.

- Você não quer sair dessa vida, Charlotte?

- Mesmo que eu quisesse, querido, não seria você o grande heroi que iria me tirar dela.

- Eu estou pedindo para você se casar comigo.

Desta vez, ela se virou. Tinha um olhar desafiador; aquele que o convencera de que era com ela, entre tantas outras, com quem iria passar aquela importante hora.

- Você está falando sério. - concluiu a moça.

Ela tirou um cigarro de um maço escondido entre suas roupas, jogadas a um canto, e o acendeu com um isqueiro vermelho. Sentou-se em um canto do carpete e, observando João de longe, tragou demoradamente.

- Você não aguentaria um dia casado com uma puta. - disse, entre baforadas de fumaça branca.

- Eu iria te dar tudo: uma casa, carro, família. Você iria ter uma vida de verdade, ao meu lado.

Ela riu como se estivesse se divertindo com aquilo.

- Seu nome seria Richard Gere e o meu Julia Roberts. - zombou.

- Pode ser sua história. - tentou ele.

- Meu bem, você não aguentaria ser casado com uma puta. O meu mundo e o seu não se misturam. - disse, com amargura.

- Você poderia começar do zero. Teria um novo nome, novas roupas. Ninguém saberia que você foi puta.

Ela se levantou e aproximou-se com passos sensuais. Olhou-o nos olhos e sorriu.

- E se um dia um dos seus amigos decentes me reconhecesse?

João Miguel quis achar uma resposta, mas não conseguiu.

- Você é um moleque carente. - sorriu ela, de forma maternal, rodeada pela fumaça de seu cigarro - Precisa viver mais.

Ele a encarou inconformado.

- Quantos anos você tem?

- 18. - respondeu, alarmada.

- Charlotte tem 18 anos. E você?

- Isso não tem nada a ver com viver mais. - disse, contrariada.

- Eu tenho 27 anos.

- Até cinquenta minutos atrás, você era um virgem de 27 anos.

O rosto dele enrubesceu e, ofendido, se calou. Pensou em retrucar, contar o número de garotas com quem havia estado e até falar sobre noites incríveis. Porém, sabia que não a convenceria de nenhuma de suas mentiras.

Charlotte se vestiu, recolheu suas coisas e, na porta, parou.

- Você pelo menos sabe porque você quer se casar comigo? Me levar para esse novo mundo e me salvar?

- Porque eu gostei de você, dessa hora que a gente passou juntos.

Ela sorriu, melancólica

- É por isso que vou estar sempre aqui.

E partiu.

9.9.11

Não pertencer

Você aí, que já tentou me puxar por uma de minhas vertentes, não se preocupe. Não é pessoal.
A verdade é que pouquíssimos realmente conseguiram.

E os que conseguiram são quase tão desajustados quanto eu.

3.8.11

Perturbação

O que me perturba não é não escrever.
Talvez eu nunca volte a fazê-lo. O que me perturba é que talvez esse seja apenas um processo natural.

Mas a perturbação é o grito da alma. E, por alguns dias, isso me acalma.

25.6.11

Liberdade

Mesmo que hesitasse, sabia bem o que queria. Queria ir além daquela porta.

Era estranho poder movê-la, ainda que com alguma dificuldade. Era pesada e travava, como se não fosse feita para abrir. Quando luz finalmente entrou, junto ao ar gelado, não poderia ter sentido maior alívio. Nem havia dado um passo à frente, sequer saído do cômodo, e sentiu esvaziar-se de qualquer necessidade. O Sol (Há quanto tempo não o via?) tocou seu rosto com uma gentileza morna. O ar fresco expandiu os pulmões em ondas energizantes. Por um ou dois segundos, era como se pudesse fazer qualquer coisa.

Quando moveu o pé direito para dar o primeiro passo, no entanto, congelou. Ali estava, a poucos centímetros da tão desejada liberdade, e não conseguiu fazer nada. Desejara por tanto tempo livrar-se das paredes, das trancas, daquela porta. Por muito tempo, pensou incansavelmente nas inúmeras coisas que faria fora dali. Admiraria o infinito azul do céu, cheiraria todas as variedades de perfumes de flores, passaria todo tempo com os melhores amigos e faria tudo o que lhe desse vontade, sem desperdiçar nem um segundo sem experimentar felicidade. E, agora, nada mais fazia sentido.

Poderia ter sido medo, insegurança ou a ansiedade - que era grande demais. Talvez um grande apego pelo desejo em si, que já não existiria assim que estivesse fora. Pensou também que poderia ter sido apenas a sensação de liberdade, breve e tão superficial, aquilo que, afinal, buscava. O que quer que fosse, não deu o passo. Voltou-se para dentro, fechando a porta atrás de si, de volta àquele breu abafado. E, mesmo assim, não deixou de sentir-se feliz.

8.2.11

Aquele homem me fez sorrir porque, afinal, trouxe um pouco de bondade a um ambiente tão hostil quanto o vagão de metrô às 6 da tarde. Seu olhar me disse coisas em que eu não acredito. Mas também deixou-me o alívio de saber que alguém nelas acredita.

Assim, continuarão existindo como o Papai Noel de qualquer boa infância.