9.9.09

O Dia de Augusto

Havia apenas uma fresta de luz entrando pelo descuido das cortinas verde-musgo, forte o suficiente para chamar Augusto de um sono de meio da tarde. Os olhos abriram lentamente, o esquerdo algumas frações de segundo mais demorado que o direito, e piscaram para iluminar parcialmente o azul-piscina que se escondia por trás das pálpebras marcadas. A sala, escura e densamente empoeirada, repousava em silêncio tenebroso para guardar imutável um cenário há muito abandonado de qualquer movimento, convivência, vida.

Augusto descansava na poltrona de couro marrom. Tinha os óculos de leitura despencando do nariz ensebado e metade de um jornal no colo, enquanto o resto dele cobria alguns centímetros de chão à sua frente. Tão bem acomodado como estava, deu um longo suspiro preguiçoso enquanto desafiava com um olhar compenetrado a folha de jornal mais distante. Ela estava além do alcance de seu braço, mesmo que fosse um jovem no ápice da funcionalidade de seus músculos e articulações.

Estava abafado e Augusto vestia o colete cuidadosamente tricotado por cima da camisa branca. Calça, meia e sapato, para combinar. Estava abafado. O facho de luz furtivo atravessava o vidro espesso da janela, trazia um calor ardido e o aprisionava em um cômodo trancado. Mas Augusto não abriu a sala para deixar escapar ou entrar qualquer coisa. Ainda mirava a folha de jornal.

Ao momento que resolvera se levantar, a luz já atingia o porta-retrato de prata, fosco pela degradação, em que a mulher emoldurada tinha o sorriso comedido das boas moças dos anos 50. Com algum esforço, Augusto desperdiçou alguns passos até as folhas de jornal dispersas enquanto arrumava o aro no rosto, para enxergar melhor. A Economia se entrelaçava à Política que não poderia estar mais distante do Entretenimento. Os Anúncios mediavam o espaço entre os dois, como o território neutro. Augusto suspirou novamente, os ombros desabando para frente como um impulso inicial.

O corpo frágil se dobrou debilmente sobre a barriga sobressalente, criando um obstáculo a se adicionar às vértebras estalantes. As pontas grossas dos dedos enrugados se esticaram na tentativa dolorosa de ao menos encostar nas folhas travessas, para o que lhe faltava menos que milímetro quando desistiram e se dobraram em garras rígidas. Em meio aos sulcos bem marcados, os olhos apertaram-se em sinal de resistência que suas pernas, bambas, não assumiram. O corpo caiu de lado ainda dobrado, em irônica posição fetal. O grito rouco de dor não foi suficiente para sequer encher a sala cerrada, muito menos para transpor portas e janelas trancadas.

Quase não se completava nem dois minutos de batalha, quando Augusto fraquejou os membros e tinha os olhos semi-abertos, atentos ao holofote que atravessava a sala, passava bem por cima de sua poltrona e apresentava a boa moça sorridente da prata envelhecida. A expressão facial não era mais capaz de mudar, os olhos azuis, no entanto, tinham um brilho incomum. O último sinal de vida que aquela sala haveria de abrigar.

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O caixão preto desceu à cova sem muitos espectadores. O filho bastardo, único herdeiro de um império nada, pagou um enterro minimamente digno para um pai ausente. Ainda fez questão de manter o colete tricotado sobre a camisa branca, lhe dar uma farta coroa de flores e guardar no bolso do defunto a foto de uma moça dos anos 50 – que não era boa, nunca esteve emoldurada em prata e lhe dera o único filho que tivera em vida.