25.6.14

Lidia

Da janela do sótão, que ficava no terceiro andar, ela podia ver o parquinho. Sentada na cadeirinha de madeira, sobre o assento almofadado, observava as crianças da sua idade brincando entre as estruturas coloridas de metal. Elas gritavam e riam, pegavam umas nas outras, conviviam, brigavam e se acertavam. Aprendiam a lidar umas com as outras, entre conversas e brincadeiras, e formavam laços. A menina que gostava do menino; o menino que gostava da menina. As três melhores amigas, que jamais poderiam ser colocadas em times diferentes. Os dois parceiros traiçoeiros que tramavam contra alguns para poderem rir com o resto.

Podia descer naquele mesmo instante, sair pela porta e caminhar até o parque sem problemas. Sua mãe não estava em casa e, mesmo que estivesse, não se oporia. Não havia doença ou qualquer condição que a impedisse. Aquelas crianças provavelmente lhe receberiam muito bem, algumas até poderiam se tornar grandes amigas. Seria uma delas, pertenceria àquele momento. Gritaria e riria, viveria uma tarde feliz.

Porém, não se mexia e mantinha seu posto na janela. Seu desejo se limitava a observar. Interessava-se, pois de outra forma não gastaria tanto tempo ali. Não tinha, por outro lado, qualquer intenção de se tornar um deles. Preferia aquela aproximação distante, em que podia conhecê-los sem tocá-los, familiarizar-se sem envolver-se. Podia conhecer aquele mundo sem sair de seu canto favorito, o cômodo de madeira, triangular, escuro e baixo. Não via sentido em deixá-lo se ali sentia-se tão bem. Preferia assim, onde pudesse ficar só ela. Só ela e, é claro, Lidia.

12.1.14

A missão de Liana

Liana estava fazendo dezoito anos e a maioridade pesava em suas reflexões daquela tarde. Já sem poder aproveitar a adolescência livre de responsabilidades, arrastava os passos mata adentro, redescobrindo os cantos mais distantes da chácara de seu avô. A festa seria a poucos metros dali, perto da piscina, e sua mãe corria de um lado para o outro cuidando dos preparativos. Para Liana, nada daquilo era importante. Tinha uma decisão para tomar.

Tudo começara quando tinha apenas onze anos e se deparou com o primeiro deles. A moça estava sentada ao lado da porta do mercadinho, suja e descalça, envolta em diversos cobertores escuros e mascando um sanduíche de mortadela. Cheirava muito pior do que em seu sonho, mas era ela. Quando a mulher olhou-a assustada, acabou com qualquer dúvida que lhe restava.

- É você. – disse a pequena Liana, confiante.

- Co... Como você sabe? Eu nunca...

- Eu sonhei com você.

Por meio de sua habilidade especial, a moradora de rua soube que a menina dizia a verdade. Olhou-a de cima abaixo, procurando por um traço de perigo, mas não encontrou. Então sorriu, exibindo os poucos dentes escuros.

- Você tem a resposta, meu anjo? Sabe por que nasci com essa maldição? – a mulher se arrastou para perto de Liana, deixando o sanduíche mordido para trás.

- Não – respondeu para decepção da outra – Mas você não é a primeira com quem eu sonhei.

- Há outros que leem mentes, que vivem esse pesadelo?

- Não, eles têm poderes diferentes.

- Você falou com algum deles?

- Não.

A moradora de rua suspirou, afastou-se e voltou ao seu sanduíche.

- Parece que você ainda tem muito a desenvolver, pequena. – disse ela, com a boca cheia – Uma missão complexa!

- Missão...?

- Você pode achar cada um de nós, nos unir, mudar o rumo de pessoas que talvez estejam perdidas por aí. Pobre criança! – e gargalhou.

- Eu não posso achar todas essas pessoas sozinhas – Liana sentiu seu coração apertar – Um deles estava caçando baleias. Onde vou achar um caçador de baleias?

- Isso é problema seu, menina – a mulher se levantou e começou a caminhar lentamente para longe. Poucos passos depois, parou – Mas se descobrir o nosso propósito, por favor, volte para me avisar.

Assim começou o dilema de Liana. Passara os próximos sete anos e meio refletindo, lendo, conversando, buscando. Conseguiu conversar com alguns deles pela internet, encontrou outros por acaso. Nenhum, porém, tinha respostas, objetivos definidos, teorias coerentes. A maioria vivia a vida fingindo ser normal, usando suas habilidades para resolver os próprios problemas do dia-a-dia. Um deles se tornara o herói da cidadezinha em que morava ao garantir colheitas boas o ano todo. Outro era um mafioso poderoso em um país europeu, com quem Liana tentara contato, mas desistira ao descobrir sobre suas atividades.

Agora que fazia dezoito anos, sentia que não tinha escapatória. Teria que colocar sua habilidade em uso, dar um sentido a ela. Por que haveria alguém com a habilidade específica de encontrar essas pessoas? Depois de anos, admitia que aquela mulher estava certa: tinha que juntá-los que colocá-los no rumo certo. Só que para isso teria que sair de casa, abandonar seu posto como irmã mais velha da família Valadares, abdicar a pretensão de se tornar médica e sair atrás de estranhos que talvez nem gostassem de ser achados. Precisava de mais coragem do que havia conseguido juntar, mas sentia ali no peito que era a decisão certa a tomar.

Ainda cheia de dúvidas, começou a fazer o caminho de volta para a área da piscina, pois sabia que sua mãe a estaria procurando para ajudar a arrumar sua própria festa. E, se tudo corresse como o planejado, tinha pouco tempo para ficar com eles antes de partir para sua jornada definitiva.

Caminhou por entre as árvores, abrindo caminho com as mãos, quando algo muito diferente de uma planta a surpreendeu. Era o rosto de um homem velho com a expressão tão surpresa quanto a dela.

- Deus do céu! Você me assustou. – disse ele, apertando a região do peito.

- Eu não disse? É ela! É ela! – uma garotinha com não mais que dez anos saltou de trás dele como um cachorrinho inquieto pedindo aprovação – Liana!

- Ok, ok. Finalmente você acertou – disse o velho, impaciente – Então você é a famosa Liana. Eu sou Zé Carniça e essa é Tina.

- Ela sabe quem nós somos, Tião. Ela já sonhou com a gente – disse a menininha.

Era verdade. O velho grisalho de barba cheia, capaz de conversar com as plantas, e a menininha espevitada, que podia ver o futuro. Sebastião e Dara. Havia sonhado com a dupla há algumas semanas, mas não tinha conseguido pistas ou caminhos para se comunicar com eles. Muitos sonhos eram assim.

- Vocês estavam me procurando? – Liana sentiu-se estranha ao ver-se do outro lado, sendo a pessoa encontrada e não a que estava buscando.

- Claro! Não podíamos perder sua festa de aniversário! – disse Dara ajeitando o vestido amarelo florido – E não se preocupe, pois sua mãe está tão ocupada que nem vai perceber.

A menina saiu correndo na frente, falando algo sobre docinhos. Liana voltou-se para Sebastião esperando que explicasse sua presença ali.

- As plantas gostam de você – sorriu ele – e, por isso, eu também. Vamos? – apontou na direção para onde Dara havia corrido.

- Por que vocês estão aqui? – perguntou Liana, acompanhando os passos lentos do velho.

- A menina viu algo terrível, moça. Uma coisa que ainda não aconteceu, mas que vai acontecer se a gente não fizer nada.

- E isso tem relação comigo?

O homem sorriu e a olhou de soslaio.

- Pode ser que sim e pode ser que não. A escolha é sua – disse – Mas a impressão que tenho é de que você já tinha decidido quando chegamos.

- Dara disse isso?

- Não. São as plantas. Elas enxergam muito mais do que podemos imaginar.

E continuaram a caminhar juntos para a festa.