4.8.13

O dia em que nada voltou ao normal

Dobrou o lençol ao meio, em uma linha reta e calculada para juntar as pontas sem um milímetro de sobra. Repetiu o ato mais três vezes e o guardou no armário em cima de uma pilha de outros lençóis dobrados de forma idêntica. Fátima organizava a roupa de cama enquanto pensava nos outros afazeres do dia, movendo os braços mecanicamente e empilhando as fronhas e o edredom de maneira eficiente e sistemática. Quando acabou, saiu da suíte principal do sobrado de três quartos e percorreu o corredor com três portas, parando rapidamente na do meio para checar se estava trancada. Não era proposital, era um tique que aos poucos se tornou hábito a cada vez que passava por ali - o que podia contabilizar mais de dez vezes ao dia. E se passasse onze vezes, checava a porta onze vezes, não importava a hora ou a situação, se estava com pressa ou não.

Sua boca estava seca; uma sede que não conseguia saciar não importava quantos litros de água engolisse. Na cozinha, alisou a toalha de mesa onde estavam uma ou duas dobras descuidadas e abriu a geladeira em busca de uma bebida gelada. Não sentiu vontade de beber suco de laranja ou guaraná. Não havia mais nada. Foi quando o toque do telefone a tirou do roteiro cotidiano e a levou para a sala, onde atendeu achando que ouviria a voz de seu marido.

- Sra. Fátima Rodrigues? - não era a voz de Otávio.

- Sim?

- Sra. Rodrigues, mãe de Catarina?

Havia recebido muitas ligações como aquela - mais do que podia contar. Porém, não recebia uma há mais de cinco anos, o que a levou à conclusão única para a qual tentava se preparar desde o dia 1. De repente, a sala rodou à sua volta e ficou enjoada.

- Sou eu mesma - respondeu com a voz trêmula.

- Achamos sua filha.

A frase bateu em seus ouvidos com um baque. Não esperava, tampouco estava pronta, porém, ansiou por ela cada segundo desde que teve arrancada sua querida Catarina. Sentiu primeiro um alívio, dissipando o grande peso dos ombros que carregava há tanto tempo a ponto de nem mais perceber que estava ali. Depois, o sentimento se compactou em um nó doloroso na garganta. Era estranho, mal podia acreditar. Agora que finalmente a ouvia, sentiu vibrar em cada célula de seu corpo, ecoando como a sentença ainda não pronunciada. “Achamos sua filha...” Aos pedaços? Queimada? Estrangulada? Como era aquele termo mesmo, que odiava tanto? “Em avançado estado de decomposição.”

- Ela está em um estado delicado, mas vai se recuperar. - foi o que ele disse.

Fátima então desabou por dentro. Depois de exatos cinco anos, oito meses, uma semana, dois dias e dez horas, Catarina reaparecia. E viva. O nó se dissolveu e correu até o estômago como se fosse a água que tomara todos esses anos. Sentiu a boca molhada. Balançou a cabeça em descrença, com um grande buraco no peito e o almoço ameaçando subir pela garganta. Queria ouvir de novo, queria que o policial confirmasse mais uma ou duas vezes, mas não conseguiu mais se mover.

Não ouviu, viu ou sentiu mais nada até voltar a si, já a caminho do hospital. Otávio estava ao seu lado; a expressão descrente de um homem que já havia desistido há muito tempo. Quando tocou seu próprio rosto, Fátima se deu conta de que estava chorando. O coração batia tão forte que doía e teve medo de morrer de infarto antes de vê-la. Deus, como queria vê-la.

Aquela moça pequena e frágil, de olhar duro, poderia ser uma versão distante de sua filha. De longe, estava irreconhecível. A Catarina de suas lembranças era o tipo de moça grande, encorpada, cheia de uma energia notável. Aquela ali era, no máximo, um fantasma anoréxico seu. A poucos metros de sua cama, Fátima tinha certeza de que tinham errado, porque, como mãe, possuía esse tipo de intuição. Mas quando a menina se virou e viu seu rosto, lançou de imediato aquele ‘olhar Catarina’. Então Fátima teve certeza absoluta de que se tratava dela, sim. Ela era sua Catarina.

O abraço durou muito e não foi o suficiente. Otávio, como sua esposa, se acabou em lágrimas de uma angústia cultivada por cinco longos anos. Era um homem ferido e aliviado. Celebrou o momento gritando de emoção, os braços erguidos em agradecimento a seu Deus. Fátima não desgrudou mais de sua filha e repetia sem parar “Nunca mais. Nunca mais.”, pois nunca mais pretendia se separar dela. Catarina estava fraca, mas fazia sentir a felicidade de vê-los com a pouca energia que tinha.

Pelos policiais, souberam da história de um homem doente que queria uma família e escolhera Catarina. Levou-a contra sua vontade e com ela teve três filhos, dos quais apenas um havia sobrevivido. Seu nome era Augusto e tinha três anos. Gostava de desenhos animados e de sorvete. Amava sua mãe. Chamava o monstro de pai.

Fátima olhou a criança com medo. Não era só que queria reencontrar sua filha, queria que tudo voltasse ao que era antes, ao normal. Ao conhecê-lo, ela chegou à horrível conclusão: o criminoso havia roubado não apenas cinco anos, mas toda Catarina. Aquela menina linda, cheia de futuro; a menina que sonhava em ser médica, casaria com um engenheiro, teria uma vida linda. Ela já não existia. Catarina era agora uma mulher de expressão séria, mãe do filho de um homem terrível, com anos de terapia intensiva pela frente. Seu rosto já estava nos jornais, manchete do dia. Ela era a mulher que havia sido presa durante cinco anos, sequestrada e estuprada desde os 15. Catarina, sua filha, jamais voltaria.

Ao final daquele dia cansativo, Fátima sentou na poltrona de visitas que ficava no quarto de hospital. Ficou observando aquela pessoa no escuro, imaginando consigo quem ela seria. Sem dúvida, a amava. Estava contente por tê-la - muito melhor do que ficar imaginando que estivesse morta ou que estivesse por aí, sofrendo sozinha. Não era? Pouco antes de adormecer, sentiu uma sensação familiar no fundo da garganta. Era sede - que água nenhuma jamais mataria.