25.3.10

Desperate Housewife

Quando Lucélia acordou naquela manhã, tudo parecia perfeitamente normal. O Sol do verão já entrava pela janela do quarto, o rádio-relógio tocava exatamente às 8 da manhã e o lado esquerdo da cama continuava vazio. Não apenas vazio, mas perfeitamente arrumado: o lençol branco por baixo do edredom azul, com detalhes bordados em branco, alinhado paralelamente com o travesseiro, cuja fronha fazia conjunto com o resto. Tudo no mesmo lugar em que ela colocara antes de se deitar, em uma cerimônia de todas as noites desde que se casara. A cama de casal era seu móvel favorito dentro da casa, pois lhe maravilhava a idéia de uma cama para dois corpos; um símbolo de união. E agora, aquilo perdia todo sentido.

Percorrendo o corredor do andar de cima, chegava ao quarto cor-de-rosa de Lili. Ela dormia, naquele sono tranqüilo dos inocentes. Não era uma criança difícil, na verdade, era até muito fácil. Jamais chorava ou reclamava ou demandava qualquer trabalho. Apenas alimentação e troca de fraldas, tarefas para as quais qualquer mãe estava sempre pronta.

Depois que verificava Lili, deveria preparar o café da manhã. Descia a escada de ipê, degrau por degrau, e passava pela sala, decorada com o clássico bege-fácil-de-lavar. Nesse ponto, tinha que atravessar o cômodo e chegar à cozinha, mas, naquela manhã, algo parou Lucélia. Um borrão se mexia por trás do vidro da porta da frente, em movimentos incertos, e a única coisa que lhe passou pela cabeça foi que não ouvira a campainha.

Poderia ser um ladrão, um suspeito que andava pela vizinhança. Mexia-se para longe e para perto da porta, como se estivesse indeciso. Lucélia o observou por alguns segundos, através da distorção do vidro, pois queria ter certeza de que não colocaria sua filha em risco. Decidiu então, não soube se por curiosidade ou porque já não agüentava mais ver aquela sombra indo e vindo, abrir a porta.

Era um homem de estatura mediana e cabelos pretos (apesar de alguns pontos brancos), vestindo uma pesada jaqueta de couro marrom. De costas, poderia ser qualquer estranho desistindo da visita, mas quando se virou, os olhos esverdeados encontraram-se diretamente com os dela. Lucélia sentiu as pernas fraquejarem, como há tempos não acontecia, e, por frações de segundos, ela pensou estar em um sonho.

“Michel”, disse com a voz fraca, e o homem congelou onde estava, a meio caminho de chegar a seu carro.

Impelida por uma saudade dolorida, Lucélia correu. Correu mais do que suas pernas agüentavam, pois precisava alcançá-lo. Pouco antes de poder tocar sua jaqueta de couro com a ponta dos dedos, ela se jogou. Ele, surpreso, teve de usar os braços grossos para segurá-la.

“Michel! Michel! É você!”, soava como uma lunática em meio a um ataque.

O homem olhava para os lados, preocupado. Resolveu levá-la para dentro em seus braços, sem dizer uma palavra. A um passo da porta, porém, ele hesitou. Já fazia muito, muito tempo.

“Deus! É um milagre... de Deus!”, ela falava com ninguém, talvez consigo mesma. Ele a colocou sentada no sofá.

“Onde você estava? O que aconteceu? Você está bem? Teve que matar alguém?”, as perguntas saíam pela boca logo que surgiam na cabeça, mas o homem se manteve em silêncio. Olhava em volta com um olhar denso, profundo, um pouco obscuro. Alguns minutos depois, resolveu se sentar na poltrona, longe dela.

“Eu estou bem. E você?”, foi o que conseguiu dizer.

“Estou bem! Aliás, estamos bem!”, ela respondeu, e antes que ele conseguisse dizer mais alguma coisa, ela sumiu escada acima, toda energética.

Sozinho na sala, ele suspirou. Questionou-se sobre o que fazia ali, se valia mesmo a pena. A menina esperava no carro por ele, morrendo de medo. Ela dissera isso no caminho, enquanto ouviam algum rock antigo que passava no rádio, “Pai, estou morrendo de medo.”

Lucélia voltou com um sorriso radiante no rosto, quase desumano. Carregava sua Lili no colo, os olhinhos esbugalhados como se estivesse assustada.

“Veja como está linda, saudável! Com saudades do pai.”, disse a mulher.

O homem esboçou um sorriso, com certo esforço. Sabia que aquele seria o momento mais difícil, a hora que talvez quisesse sair correndo porta afora. Felizmente, conseguiu se segurar.

“Precisamos conversar, Luci. Muito sério.”, disse sem rodeios e Lucélia perdeu o sorriso.

“Diga, Michel. Diga, meu amor.”, ela se sentou no sofá, sem largar Lili.

“Você precisa parar de dizer para a polícia que estou desaparecido.”

“Mas você estava desaparecido! Agora eu posso parar, porque você está em casa!”, disse ela.

“Luci, eu tenho uma nova família agora. Você entende o que estou falando? Ela está grávida. Eu amo ela.”, ele falava devagar para que ela não perdesse nenhuma palavra.

“C-Como assim? Você... Você... Seu...”, a voz sumiu para dar lugar a grossas lágrimas.

“É isso mesmo, Luci. Eu tenho outra família, outra casa. Você tem que parar de dizer que estou desaparecido.”, ele continuava com o tom de um professor pré-primário.

“NÃO! VOCÊ NOS DEIXOU POR OUTRA FAMÍLIA?! E A LILI? E EU? VOCÊ NÃO PODE FAZER ISSO, SEU... SEU!”, Lucélia se levantou afobada e berrava a plenos pulmões. O visitante também se levantou, para tentar acalmá-la. Tinha também medo que ela o atacasse de alguma forma.

“E a nossa casa? E a nossa família? Como você foge assim sem mais nem menos? Como você tem coragem?”, a voz dela não estava mais alta, porém soava quebrada, magoada.

“Luci, eu não saí sem mais nem menos. Eu –“

“NÃO! Sai daqui, seu canalha! Nem eu, nem a Lili precisamos de alguém como você. Sai, sai, sai!”, agora ela indicava a porta com um dedo trêmulo, enquanto segurava Lili com o outro braço.

“Luci, por favor, entenda.”

“Saia.”, disse em tom conclusivo.

O homem andou em direção à porta, cabisbaixo. Odiava estar ali, naquela sala. Não havia mudado nada desde a última vez.

“Você vai parar de dizer que estou desaparecido?”, perguntou ele, com metade do corpo para fora da casa.

“Saia.”, as lágrimas escorriam livremente pelo rosto contorcido de dor.

Ele foi, sem nem olhar para trás. Na sala, Lucélia derrubou mais algumas lágrimas e depois acariciou Lili, preocupada que ela estivesse estressada. Deitou-a no colo e os olhos fecharam imediatamente. Quando a levantou para abraçá-la, os olhos de plástico se abriram, revelando um verde artificial. Os cotovelos inflexíveis davam a impressão de que pedia pela mãe.

“Oh, meu amor. Não se preocupe. Estou aqui, sempre estarei.”, disse Lucélia, calorosamente.

De repente, olhando de frente para Lili, o sorriso eterno fez Lucélia rir. Depois de alguns segundos, ela gargalhava.

“Ah, minha filha, que mãe boba você tem. Confundir aquele estúpido com seu pai! Me desculpe, querida.”

Atravessou a sala, entrou na cozinha e começou a preparar o café da manhã.

11.3.10

Quarta-feira

De seu cubículo, Marta ouvia
Joana fofocando,
Carlos em ligação (pessoal),
Marieta se servindo do café, quentinho.

Percorreu o corredor, disfarçadamente
Alcançou o banheiro feminino
Escalou a última privada
(Aquela abaixo da janela).

E respirou.

3.3.10

Decisão de vida

Ali no morro, Vitor pega a mão de Raíssa, morrendo de medo de estar fazendo alguma coisa errada. Ela usa um vestido azul cheio de flores bordadas na barra e ele a camisa da Igreja, porque é a única que não está furada no sovaco. As estrelas brilham, os grilos cantam aquela musiquinha engraçada e a vista é a mais bonita da cidade. Sob a luz do luar, Raíssa sorri com o mesmo nervosismo que Vitor encosta a mão dele na sua.

- Quer namorar comigo? - ele pergunta, sem olhar para ela.

- Eu quero. - responde a menina, ajetando as dobras do vestido.

Julia observa o morro pela janela de seu quarto. Duas sombras interferem a vista da Lua, juntas demais. Não consegue ouvir o que dizem, mas vê que estão de mãos dadas. Ele, Vitor, e ela, Raíssa. Dois colegas de classe com quem nunca falou na vida.

Deitada em sua cama, ela arranca as páginas de um caderno cor-de-rosa que quando novo exalava cheiro de perfume. As lágrimas percorrem as bochechas inchadas, de criança triste e contrariada. Com um som de rasgo, a folha se solta, amassada, cheia de corações desenhados e letras formando o nome "Vitor". Vitor.

Quando termina o massacre, a menina pega a caneta azul com purpurina e escreve na próxima página em branco, com tanta raiva que a mensagem sai com letras tortas: Eu nunca mais vou amar ninguém.

Fecha o caderno que agora só cheira a sulfite, se enterra no travesseiro e dorme ali mesmo, até o dia seguinte.