30.5.13

O Melhor Amigo

Aquele corredor era desconfortável,  feito para ninguém se acomodar. Poucos bancos, azulejo barato. Um verde esterilizado nas paredes. Artur percorreu a distância com aquele ar ansioso que todos assumiam ao entrar no prédio. Sua missão era encontrar seu defunto entre salas trancadas,vazias ou apinhadas de pessoas chorosas.

Estava triste. Nunca pensou que o primeiro dos seus a lhe deixar seria Ivan - sua companhia favorita para o cafe, já que não havia outro no mundo que apreciasse a iguaria tão obcecadamente quanto ele mesmo. Essa lembrança lhe doeu no peito segundos antes de encontrar a sala certa. A viúva, um vulto centralizado na massa respeitosa de pessoas em luto, estava de pé ao lado do defunto exposto no caixão, com um tufo de algodão em cada narina. Logo que o viu, Artur preocupou-se com a possibilidade de não estar respirando direito, sentindo-se estúpido em seguida. Foi quando algo desabou dentro de si.

Não estava triste, estava destruído. Por dentro, sentiu esmigalhar-se em milhões pedaços cortantes, deixando em seu lugar um vazio tão imenso quanto doloroso. Foi uma pontada de pura solidão que causou a falha na voz quando dizia à viúva que Ivan era um dos melhores. Na verdade, ele era o melhor. Único, distinto - e todo o resto, se não lixo, era nada.

Foram 60 anos. Aos 15, ainda adolescentes, descobriram uma afinidade sem igual e, aos 20, já sabiam que nada os separaria. Só não contaram com a morte.

Agora chegavam ao fim. Vendo-o daquela forma, dormindo tão definitivamente, não pôde evitar a sua mente de divagar para aquele dia, décadas atrás, que guardava tão vívido na memória quanto os acontecimentos do dia anterior. Ivan lhe olhava nos olhos enquanto passava os dedos por sua coxa. Entre manter o contato visual e afastar-se com qualquer desculpa, Artur optou pelo segundo e carregou o peso da decisão para o resto da vida: quando gostava demais da companhia do amigo e não podia se expressar; quando ele se casou e não podia se sentir totalmente feliz por ele; quando ele lhe contou em desabafo que não sentia vontade de dar um filho à mulher e não pôde ser um bom conselheiro.

Com o tempo, as gerações se livraram de tantas amarras sociais. Hoje, bem sabia, podia demonstrar seus desejos sem a mesma condenação de seu tempo e encontrar companheiros de todos os gostos. Mas não o fazia. Trair Ivan seria pior do que manter qualquer máscara social. Apesar do amigo ser casado, sabia que para ele Laura era só uma tentativa de seguir em frente. Sabia também que ele nunca quis uma relação com outro homem.

O velório seguiu segundo todas as tradições católicas, com um padre para dizer tudo aquilo que não poderia saber sobre o morto. Antes de ir, Artur ofereceu suas condolências mais uma vez à viúva. Por fim, voltou ao seu apartamento vazio.