4.11.09

A cerca

Quando a casinha de madeira rústica silenciou e juntou-se à escuridão da mata que a cercava, Olivia remoía uma vontade. Do seu quarto, esticava os pensamentos até aquele celeiro velho onde estava Mundão. É que Mundão era um desses, inesquecíveis. À primeira vista já se via que nascera para marcar. Era grande, muito maior que Olivia, e era tão preto que à noite não se via.

Os pezinhos balançavam ao ritmo da ansiedade, que ora era frenética, ora era quase sonolenta. Aquela era uma dessas vontades que não a deixariam dormir. Ela poderia revirar na cama, amassar o travesseiro e até tentar a rigidez do chão; nada tiraria Mundão de sua cabeça.

Tinha que vê-lo. Afastou o lençol, desenroscou as pernas e pousou os pés no chão, descalços. Sabia que se sua mãe a ouvisse sair, levaria castigo pesado, porque o breu da mata era perigoso; e perigo e mãe nunca eram boa combinação. Então, se aproximou da janela aberta do quarto.

Olivia gostava da brisa da noite, lembrava-lhe as histórias do avô falecido. Para sua surpresa, quando olhou para fora não viu apenas mato. Mundão, antecipando seu desejo, já se postava enorme à sua espera. Ao vê-lo, Olivia se apressou para sair, ligeira como poucos poderiam imaginar.

Da janela, pulou direto para o lombo de Mundão, que a segurou firme. Ele era forte, os músculos palpáveis sob a pele e Olivia gostava disso. Ela deitou-se inteira para poder agarrar a crina grossa e embaraçada e travou os calcanhares nas laterais. Sabendo o que fazer, Mundão começou a andar em direção aos campos.

A velocidade aumentava rápido, como estavam acostumados. A mãe temia que um dia sua caçula caísse e batesse a cabeça; pai não confiava no garanhão negro como a noite. Olivia sabia que nas costas de Mundão tudo era possível. Cavalgavam, abraçados como um, explorando os campos como aventureiros desvairados. Quando ficava muito rápido e Mundão atingia o limite dos cascos duros e pernas de campeão, Olivia se agarrava tanto à crina que chegava a enfiar seu rosto nela, gritando de excitação. O cheiro era de pêlo selvagem, de celeiro, de pasto sujo, de Mundão, de liberdade.

Cavalgar à noite era gostoso, a única luz nos olhos era aquela suavidade da Lua. Andaram pastos, matos, todo terreno do pai. Circundaram a casa, sem medo de acordar alguém. Eram corajosos quando estavam juntos.

Quando terminaram de explorar tudo, Mundão foi diminuindo a velocidade, o que decepcionou Olivia. Ela queria mais, nunca conseguiria dormir com o coração pedindo por mais, mais, mais. Mesmo Mundão queria e procurava. Até que, ao longe, viram a cerca que marcava os limites dos hectares. Ficaram parados por um segundo, vendo além dela os terrenos sem fim, inexplorados.

Mundão se afastou, como se calculasse os metros necessários. Olivia sentiu a pulsação acelerada nas mãos que apertavam a crina. "O pulo mais alto do mundo", ela sussurrou. Ele disparou, como nunca fizera antes.

Era tão rápido que Olivia teve medo de não se agüentar. Então segurou forte, muito forte, mesmo sabendo que seu corpinho já entortava para um dos lados e era lançado muito acima do lombo de Mundão quando ele dava uma passada mais forte. Só que ela não desistiria, agora que estava tão perto da cerca. E ele pulou.

Ambos pairaram sobre a cerca, a ascensão foi forte e Olivia estava feliz porque ainda se segurava. Os olhos estavam fechados, da força e do medo. E continuaram assim, porque ela sabia que o choque com o chão não seria mais fácil. Quando abriu os olhos finalmente, viu as árvores e as cercas ficarem pequenas logo abaixo. Mundão não cavalgava mais, voava para a Lua esbranquiçada.

A brisa foi ficando mais fria e Mundão não parou. Teriam que chegar a Lua. E, por algum motivo Olivia soube: Adeus.


Não foi por escrever, foi por desabafar.