28.1.10

De viver

Dona Helena era um tipo de mulher prática e bem vivida. Tão cheia de cicatrizes, que era possível sentir sua dor através do profundo preto de seus olhos. Eram como dois poços de piche, densos, avassaladores para quem os encarasse.

- O homem que ganha o coração assim muito forte e muito rápido, não é homem que dura. Paixão é uma armadilha dolorida, minha filha.

Ritinha sempre foi a versão menor de sua mãe. Ouvia e convivia tanto com ela que aos poucos tomava os mesmo trejeitos, as mesmas palavras. Na adolescência mimetizava tão bem os gestos de Helena, que parecia mesmo um pequeno clone, cheio de personalidade e de confiança em tudo o que dizia. “Ah, se a mulher não trabalha, vive de mendigagem com marido cafajeste.”, dizia para as amigas. “Se fosse eu com seis filhos – Deus que me livre! – arranjava dez empregos, em vez de ficar na rua caçando homem que bate em criança.”, opinava sobre a vida da vizinha. No dia em que pegou três marmanjos mal-tratando um cãozinho de rua, pegou um pau e saiu correndo aos berros para chamar ajuda e dar uma lição neles. Bateu neles até que o último se rendesse e ai deles se voltassem a fazer malandragem naquela vizinhança.

“Esse Marco Antônio olha assim pra todas, não pode ser boba não.” Pois foi quando Marco Antônio entrou em sua vida que o rumo das coisas mudou. O menino era o galã da escola. Alto, atlético, desses com ombros largos e com aqueles olhos verdes de derreter qualquer coração. Ritinha resistiu mais que qualquer outra que Marco já havia posto em sua mira. Xingou, falou mal pra todo mundo, até pregou peças para humilhar o rapaz. Mas ele foi tão, tão insistente que quando já era moça adulta, cheia de um romantismo que sua mãe oprimia com todas as forças, não conseguiu mais fugir. Se entregou de corpo e alma, entregou tão entregada que grudou de vez.

Casaram. Tiveram uma filha que Dona Helena pôde conhecer apenas nos primeiros anos. A mulher, mula teimosa, faleceu de doença fatal, ainda fiel a suas crenças, suas opiniões. Tão crente de si mesma que até fez Ritinha duvidar de seu amor por Marco Antônio e do amor dele por ela. Tanto que ela até chegou a se perguntar se deveria ensinar à sua filha os mesmos ensinamento da avó, que querendo ou não estava certa de muita coisa.

- Dona Rita, a Maíra ligou querendo falar do casamento. Pediu para ligar ainda hoje pra ela.

Ritinha concordou com a cabeça, olhando o mar do horizonte, longe dali, longe da varanda que Marco Antônio construíra anos atrás com seus próprios braços. Os cabelos grisalhos oscilavam ao ritmo da brisa marítima, as rugas aprofundavam quando dava, mesmo que de muito leve, o sorriso sereno. O morno da tarde fazia bem à alma.

O pôr-do-Sol era a cada dia mais tocante. Sozinha, era como a única fonte de calor para seu dolorido coração. E quando os pontinhos brilhantes de luz no azul marinho tomavam o lugar do laranja eletrizante, Dona Rita tinha lágrimas nos olhos. Olhava para a cadeira ao lado, há quatro anos vazia. E voltava para dentro, sempre imaginando se a solidão era melhor sem a dor de uma saudade.

18.1.10

Possibilidades

Ali, por entre as tábuas, Doca parecia feliz.

- Como é o outro lado da cerca?

- Ah, é grande, infinito. - disse o convencido, ciscando no seu território.

- É bom? - grunhou Natan, humilde.

O galo de briga parou e refletiu.

- Nem sempre.

- Por quê? - perguntou o curioso, extasiado com informação de fora.

- Muitas possibilidades.

Doca bateu as asas e chegou do outro lado do campo em vôo defeituoso.
E Natan não pode deixar de invejá-lo.

4.1.10

O próximo bolo

Alguém bateu na porta de madeira duas vezes, de uma forma monótona e contida. Entre, disse Um. O Outro entrou, o pedido de desculpas em uma mão e nada mais. Olá, disse o Outro. Olá, disse Um. Os dois se olharam por alguns segundos infinitos.
Não havia exatamente um motivo concreto, todo entendido por ambas as partes. Alguém admitiu que era culpado, teve aquele que concordou, gerou briga, levou a palavras que não se podia pronunciar. Quem diria que estariam ali agora? Um se mexeu de incômodo, orgulhoso demais para continuar a conversa. O Outro estava tão perdido que ensaiou a expressão de tristeza.
Assim não vamos a nenhum lugar, disse Um. O Outro não entendeu, mas balançou a cabeça concordando. Você sabe por que estou assim?, perguntou Um. Eu comi sua parte do bolo, respondeu o Outro, tentando a voz mais suave que podia. Não, disse Um e agora estava com a cara fechada. Então?, perguntou o Outro, e Um não respondeu. Você não entende nada mesmo, disse Um depois da pausa e nada mais foi dito.
O Outro estava com medo de falar, porque geralmente estava errado. Um tinha raiva de que o Outro não dissesse nada por não saber, porque deveria saber e ele nunca sabia. Não era nada por causa do bolo, era o que ele simbolizava. E o Outro não entendia nada disso, porque geralmente só via o bolo, que sempre lhe parecia pouco demais para virar briga.
Me desculpe, disse o Outro. Um estava irredutível, decidido a morrer pela sua causa. Vá embora, disse Um. O Outro foi, porque sabia que naquele ponto nada mais poderia ser dito. Um o viu ir pelas costas e, sozinho, percebeu que não lhe restava nada senão chorar.

Na manhã seguinte Um sorria porque não queria mais chorar pelas coisas que já nem eram tão importantes e o Outro sabia que mais cedo ou mais tarde, o próximo bolo viria.