22.2.10

Teste de Gravidez

Era Regina que segurava o palito, apesar de Norma ser sua dona. Negativo, anunciou em voz monótona. Negativo, repetiu mentalmente.

Norma olhou-se no espelho, procurando pela outra. Aquela mulher ansiosa, possivelmente grávida. Não encontrou. Então o reflexo de Regina surgiu atrás do seu, os olhos cheios. Não de compaixão, mas de piedade. Aquela maldita piedade.

Ufa, disse Norma, sem sorrir. A amiga sorriu, mas a piedade não desapareceu. Você pode ir, sei que tem muito que fazer, foi o que falou para que fosse embora. Não foi. Norma alargou um sorriso no rosto, uma tentativa fraca. Regina não se mexeu.

E o pai?, Regina era direta. Nunca mais me ligou, respondeu. Perderam-se em pensamentos, nenhuma das duas falou durante alguns minutos. Vou para casa antes que o Fábio chegue, foi a despedida de Regina. Norma a acompanhou com os olhos, mas ficou no banheiro. Ainda se olhava no espelho.

Negativo, repetiu para si mesma. Lavou o rosto, só água. Ajeitou o cabelo desgrenhado e ensaiou o sorriso. Mirou o frasco de Valium, medicado para a insônia. Pagou o batom, passou e saiu.

17.2.10

A sexta da lista

O casarão guardava silêncio mórbido, como era de costume. Raramente, quando a noite caía, era possível testemunhar qualquer uma das tantas janelas completamente iluminadas, limitando-se a pequenos pontos de luz alaranjados aqui ou ali. Por mais que soasse como um lugar assombrado, a simples explicação era que a única moradora e herdeira do casarão se chamava Zeyla Mardi, uma excêntrica escritora de fama limitada aos círculos cult-intelectuais. Uma de suas tantas manias era sempre evitar locais bem-iluminados e acreditar piamente que sua grave miopia se curava aos poucos quando forçada a enxergar no escuro.

Naquela noite, Zeyla se aninhava no largo tapete persa, bem em frente à lareira da sala principal, imersa em meio a um mar de folhas de papéis, completamente preenchidos com textos de sua autoria, alguns descartados outros apenas jogados. Prestava atenção, no entanto, nos únicos cinco recortes de papéis que carregavam textos de outros autores, mais precisamente de repórteres do jornal local. Aquele que segurava dizia em grandes letras sensacionalistas “Joanna Lubrick é a primeira vítima de uma cruel caçada a insubstituíveis artistas consagradas”.

O fogo na lareira crepitava quente e aconchegante enquanto Zeyla tragava um cigarro de sua marca favorita. Havia um sorriso sutil marcando o canto dos lábios finos enquanto lia os recortes e foi um estalo incomum que interrompeu seus pensamentos e chamou sua atenção à parte escura que a iluminação da lareira não alcançava. Sim, ele havia chegado.

- Estou decepcionada, Luke. – disse, agora um sorriso mais largo no rosto, quase como se fosse de prazer.

Um rosto bem modelado surgiu das sombras como um gatuno à espreita, pronto para atacar. Era um homem jovem e bem apessoado, cujo nariz reto fazia uma combinação de perfeita proporção com os redondos olhos verdes. E sorria da sua forma mais magnética.

Zeyla mirou-o com olhos seduzidos. Havia conhecido Luke em sua viagem para o monte Aconcágua, na América do Sul, quando ambos faziam uma parada no acampamento Berlim, o mais próximo ao pico. Era um homem que desde a primeira vista chamava atenção pela sua aparência e conquistava com a fala fina e sofisticada. Bonito, culto e inegavelmente bom de cama.

- Ah, minha querida Zeyla, eu sabia que você ficaria magoada. – disse ele, se aproximando da lareira.

- Não precisava ser a primeira, é claro que não, mas a sexta? E por que aquela pirralha da Joanna? – ela ainda segurava o recorte com a notícia sobre a morte de Joanna Lubrick.

A gargalhada dele dominou o cômodo, como se tivesse ouvido uma piada muito engraçada.

- Você me conhece, Zeyla. Eram tantas mulheres, todas tão apaixonadas...

Zeyla o conhecia muito bem. Depois de Aconcágua, viveram cinco tórridas semanas de paixão ininterruptas, nas quais fizeram todo amor que puderam, escreveram projetos juntos e viajaram para os mais variados destinos. Mesmo sendo 20 anos mais velha que seu companheiro, Zeyla sabia que esbanjava tanta energia e vivacidade quanto ele, mas também tinha outra certeza: a de que ele tinha uma personalidade volúvel, instável, efêmera. Luke era um homem extremamente sedutor, mas acima de tudo misterioso e provavelmente perigoso. E quando ele finalmente se foi, da forma como ela previa, deixou um recado curto e direto: “Quando eu voltar, será para libertá-la.”

- O que se pode dizer sobre essas mulheres que te amaram tanto? – perguntou Zeyla, de forma retórica – Conheci algumas delas, sobre as outras li alguma coisa. Viviam intensamente, até aquele ponto em que incomoda as pessoas.

Zeyla se deixou levar por seu monólogo filosófico e depois tragou seu cigarro mais uma vez. Luke demonstrou-se interessado em ouvir, mas ela se calou, como se esperasse que ele viesse até onde estava.

- Eu sou a última? – perguntou Zeyla, ao perceber que ele não se afastaria da lareira quente e iluminada.

- Não. Tenho vinte mulheres na lista. – respondeu, seco.

- Herói generoso digno de adoração, homenagens, as amantes que quiser. – sorriu ela, falando em tom irônico.

Seguiu-se o silêncio, à exceção do crepitar do fogo. Ele se aproximou com jeito tranqüilo de quem está prestes a cumprir uma função rotineira, mas Zeyla sabia reconhecer seu modo ameaçador de observá-la. Ela não se moveu.

Quando Luke estava perto o suficiente, Zeyla sentiu a fragrância de sua colônia e teve vontade de abraçá-lo, beijá-lo, conquistar mais uma noite grudada naquele corpo perfeito. Ele, no entanto, parou a uma distância longe o suficiente para assegurar que isso não ocorresse e tirou uma bela adaga de prata do bolso, reluzindo como nova, como se nunca tivesse sido utilizada. Mas Zeyla sabia que ela havia sido empunhada pelo menos cinco vezes antes daquela.

- Você nunca parou para pensar que talvez você seja apenas um assassino em série e nada mais? – perguntou ela, sabendo que tinha pouco tempo agora.

Zeyla tinha o sorriso cínico que caracterizava quase todas as suas fotos na mídia, de um jeito superior e entediado. Luke não pôde deixar de sorrir de volta.

- Zeyla, querida, que tipo de mulher você seria se sorrisse assim para um simples assassino em série prestes a golpeá-la?

Ele não lhe deu tempo para responder. Cortou sua garganta profundamente, como fizera com todas as outras, fazendo sangue espirrar em suas roupas, no cigarro ainda aceso, na lareira crepitante, no caro tapete persa, nas inúmeras folhas espalhadas pelo chão e nos cinco recortes de jornal. E antes que Zeyla perdesse a consciência para sempre, ele lambeu a adaga embebida em vermelho-vivo e falou:

- Não, meu amor, eu sou seu salvador.

10.2.10

Alterego

Leonardo era o tipo de terno, penteado e certo, o tipo orgulho da mãe, favorito do pai, o de maleta e celular smartphone. Lucas não, era o todo errado, era o menino rebelde, um apaixonado. De cabelo esquisito, sujo, mal-lavado, o que somente sabia fazer sua arte: o de tocar violão.

Com tanta diferença, só haveria mesmo um lugar para suportar tanto. Era na estação de metrô que esse extremo contrário convivia, existia, era. Na estação que se fazia o avesso, de um que só passa apressado, sombra cinza obstinada, enquanto o outro era o parar e abrir-se todo para aquela passageira multidão.

Leonardo, tinha que admitir, não era lá muito de música, muito menos de violão. Ouvia, às vezes apreciava, mas preferia as coisas mais lógicas, o passo-a-passo, o racionalmente explicável. Era mais o tipo prático que odiava drama, enrolação. Lucas, por ser invertido, já fazia o tipo viajado, perdido, louco irracional. Gostava do ritmo freado, para sentir, contemplar, se emocionar.

Apesar de no mesmo lugar, Leonardo jamais se deparou com Lucas, nem vice-versa. Pelo menos não na estação. Leonardo era o homem preso a um horário, aquele horário comercial. Lucas era o homem tudo, menos o do horário comercial.

Todos os dias Leonardo acordava às 7:30h e chegava ao escritório às 9h. Nesse horário, Lucas ainda dormia ou estava para dormir. Leonardo trabalhava o dia inteiro, Lucas compunha no entorpecimento. Leonardo na papelada, Lucas nas partituras. Um no computador, outro no violão. Pausa para o café, pausa para outro tipo de som.

Leonardo saía do trabalho às 18h e era só aí que Lucas estava se preparando para ir. Um ia, outro vinha. Convergindo na mesma estação. Quando Leonardo pisava em casa, Lucas já estava pronto, de pé, engatado. Leonardo tirava o paletó, a gravata, a camisa. Lucas esperava, pelo sinal. Leonardo tirava também a calça. Deixava a maleta, o smartphone. Lucas e sua a caixa de violão.

Leonardo trocava, se mudava, se reconstruía. O expediente havia acabado.

Então, aí sim, Lucas saía, chegava e tocava seu violão.

3.2.10

Manchete de Jornal

Durante a madrugada de ontem, a empresária Amanda Pwinki (55) foi encontrada morta a poucos metros da guarita do prédio onde morava. Pelo estado de seu corpo e alegações de testemunhas, a polícia considera que tenha se jogado de seu próprio apartamento no 19º andar, onde residia há mais de dois anos. Dona Jussara, outra moradora do 19º andar, diz que acordou com o estrondo, assim como a maioria de seus vizinhos. “Foi muito alto, eu até achei que estava tendo um pesadelo. Quando olhei, o porteiro chamava por ajuda e outras pessoas estavam observando.”, diz, emocionada. Ela também conta que Amanda era uma mulher amável, apesar de reservada, e que tratava a todos com muito respeito.
Para o ex-marido, Luis Banis, foi uma grande surpresa. “Nós nos encontramos no fim de semana passado para resolver assuntos das crianças e ela parecia muito bem. Ria de tudo, fazia piadas, até achei que estávamos nos aproximando.”, revela, claramente abatido. Amanda e Luis tinham dois filhos juntos, uma menina de 15 anos e um menino de 9, que moram com o pai em um bairro nobre de São Paulo. Luis ainda não teve coragem de dizer o que aconteceu para os filhos e nem sabe como irão reagir.
Para a mãe de Amanda, Marcia, a filha já dava sinais de depressão há um bom tempo. “Ela me ligava tarde da noite para falar de coisas sem importância, eu achava que era porque ela queria conversar coisas sérias e não tinha coragem.”, desabafa a senhora, viúva há dez anos. “Meu marido que conhecia bem a minha filha, dizia que ela era bem transparente e que não estava feliz em seu casamento. Acertou, porque ela acabou divorciando, né?”
No apartamento de Amanda, nada parecia fora de lugar. A polícia encontrou a cama feita, nenhuma louça para lavar, tudo muito limpo e bem arrumado. Em seu quarto, a janela estava totalmente aberta e havia uma carta, que endereçada à sua mãe, dizia:

“Mãe,
A senhora se lembra daquele fim de semana na fazenda do tio Mário? O papai queria me ensinar o nome dos pássaros, mas eu queria mesmo era cavalgar no Luke, o maior garanhão de lá. Fui de teimosa, subi nele quando ninguém estava olhando, tive minha diversão por 2 minutos e caí dura no chão. Lembro que vocês demoraram para me achar e eu ouvia meu nome aos gritos. Fiquei deitada na grama um tempão, sentindo minha perna quebrada, chorando feito tonta, rezando porque achava que iria morrer.
Naquele momento, um pássaro preto – que depois o pai me diria ser um Chupim - pousou perto de mim. Ficou me olhando, me encarando, e deu um pio tão poderoso que chamou a atenção de vocês. Não sei se você se lembra de me achar por causa dele, eu não contei isso para ninguém.
Foi nesse dia que secretamente comecei a desejar ser um Chupim. Ele é pequeno, mas tem um canto alto e voa feito um esnobe. A senhora nem imagina a admiração que tive por ele naquele dia. Cheguei até a montar uma pasta enorme só com informações e fotos dele, que mantive e alimentei por anos a fio.
Com o tempo, é claro, a gente esquece dessas coisas. Nem sei qual foi o fim da pasta, se acabei jogando fora. Nem sei se você um dia chegou a vê-la. É estranho, depois de tanto tempo, eu me lembrar dela, as inúmeras páginas montadas com tanto carinho, tanto sonho e esperança.
Naquela época, acho que eu ainda acreditava em muitas coisas que eu acabei deixando para trás.

Me desculpe, mãe.

Amanda”