17.2.10

A sexta da lista

O casarão guardava silêncio mórbido, como era de costume. Raramente, quando a noite caía, era possível testemunhar qualquer uma das tantas janelas completamente iluminadas, limitando-se a pequenos pontos de luz alaranjados aqui ou ali. Por mais que soasse como um lugar assombrado, a simples explicação era que a única moradora e herdeira do casarão se chamava Zeyla Mardi, uma excêntrica escritora de fama limitada aos círculos cult-intelectuais. Uma de suas tantas manias era sempre evitar locais bem-iluminados e acreditar piamente que sua grave miopia se curava aos poucos quando forçada a enxergar no escuro.

Naquela noite, Zeyla se aninhava no largo tapete persa, bem em frente à lareira da sala principal, imersa em meio a um mar de folhas de papéis, completamente preenchidos com textos de sua autoria, alguns descartados outros apenas jogados. Prestava atenção, no entanto, nos únicos cinco recortes de papéis que carregavam textos de outros autores, mais precisamente de repórteres do jornal local. Aquele que segurava dizia em grandes letras sensacionalistas “Joanna Lubrick é a primeira vítima de uma cruel caçada a insubstituíveis artistas consagradas”.

O fogo na lareira crepitava quente e aconchegante enquanto Zeyla tragava um cigarro de sua marca favorita. Havia um sorriso sutil marcando o canto dos lábios finos enquanto lia os recortes e foi um estalo incomum que interrompeu seus pensamentos e chamou sua atenção à parte escura que a iluminação da lareira não alcançava. Sim, ele havia chegado.

- Estou decepcionada, Luke. – disse, agora um sorriso mais largo no rosto, quase como se fosse de prazer.

Um rosto bem modelado surgiu das sombras como um gatuno à espreita, pronto para atacar. Era um homem jovem e bem apessoado, cujo nariz reto fazia uma combinação de perfeita proporção com os redondos olhos verdes. E sorria da sua forma mais magnética.

Zeyla mirou-o com olhos seduzidos. Havia conhecido Luke em sua viagem para o monte Aconcágua, na América do Sul, quando ambos faziam uma parada no acampamento Berlim, o mais próximo ao pico. Era um homem que desde a primeira vista chamava atenção pela sua aparência e conquistava com a fala fina e sofisticada. Bonito, culto e inegavelmente bom de cama.

- Ah, minha querida Zeyla, eu sabia que você ficaria magoada. – disse ele, se aproximando da lareira.

- Não precisava ser a primeira, é claro que não, mas a sexta? E por que aquela pirralha da Joanna? – ela ainda segurava o recorte com a notícia sobre a morte de Joanna Lubrick.

A gargalhada dele dominou o cômodo, como se tivesse ouvido uma piada muito engraçada.

- Você me conhece, Zeyla. Eram tantas mulheres, todas tão apaixonadas...

Zeyla o conhecia muito bem. Depois de Aconcágua, viveram cinco tórridas semanas de paixão ininterruptas, nas quais fizeram todo amor que puderam, escreveram projetos juntos e viajaram para os mais variados destinos. Mesmo sendo 20 anos mais velha que seu companheiro, Zeyla sabia que esbanjava tanta energia e vivacidade quanto ele, mas também tinha outra certeza: a de que ele tinha uma personalidade volúvel, instável, efêmera. Luke era um homem extremamente sedutor, mas acima de tudo misterioso e provavelmente perigoso. E quando ele finalmente se foi, da forma como ela previa, deixou um recado curto e direto: “Quando eu voltar, será para libertá-la.”

- O que se pode dizer sobre essas mulheres que te amaram tanto? – perguntou Zeyla, de forma retórica – Conheci algumas delas, sobre as outras li alguma coisa. Viviam intensamente, até aquele ponto em que incomoda as pessoas.

Zeyla se deixou levar por seu monólogo filosófico e depois tragou seu cigarro mais uma vez. Luke demonstrou-se interessado em ouvir, mas ela se calou, como se esperasse que ele viesse até onde estava.

- Eu sou a última? – perguntou Zeyla, ao perceber que ele não se afastaria da lareira quente e iluminada.

- Não. Tenho vinte mulheres na lista. – respondeu, seco.

- Herói generoso digno de adoração, homenagens, as amantes que quiser. – sorriu ela, falando em tom irônico.

Seguiu-se o silêncio, à exceção do crepitar do fogo. Ele se aproximou com jeito tranqüilo de quem está prestes a cumprir uma função rotineira, mas Zeyla sabia reconhecer seu modo ameaçador de observá-la. Ela não se moveu.

Quando Luke estava perto o suficiente, Zeyla sentiu a fragrância de sua colônia e teve vontade de abraçá-lo, beijá-lo, conquistar mais uma noite grudada naquele corpo perfeito. Ele, no entanto, parou a uma distância longe o suficiente para assegurar que isso não ocorresse e tirou uma bela adaga de prata do bolso, reluzindo como nova, como se nunca tivesse sido utilizada. Mas Zeyla sabia que ela havia sido empunhada pelo menos cinco vezes antes daquela.

- Você nunca parou para pensar que talvez você seja apenas um assassino em série e nada mais? – perguntou ela, sabendo que tinha pouco tempo agora.

Zeyla tinha o sorriso cínico que caracterizava quase todas as suas fotos na mídia, de um jeito superior e entediado. Luke não pôde deixar de sorrir de volta.

- Zeyla, querida, que tipo de mulher você seria se sorrisse assim para um simples assassino em série prestes a golpeá-la?

Ele não lhe deu tempo para responder. Cortou sua garganta profundamente, como fizera com todas as outras, fazendo sangue espirrar em suas roupas, no cigarro ainda aceso, na lareira crepitante, no caro tapete persa, nas inúmeras folhas espalhadas pelo chão e nos cinco recortes de jornal. E antes que Zeyla perdesse a consciência para sempre, ele lambeu a adaga embebida em vermelho-vivo e falou:

- Não, meu amor, eu sou seu salvador.

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