18.12.10

No bar

- Cerveja.

Lorena olhou para o lado, viu um homem magro de olhos densamente escuros.

- Como?  - perguntou.

- Cerveja. Você é uma mulher de cerveja, não?

- Talvez. - disse - Quem quer saber?

Ele sorriu. Não tirou os olhos dela por alguns longos segundos e depois sentou-se ao seu lado no bar.

- Meu nome é Horácio. - respondeu, entre um gole e outro de seu whisky.

- Você me parece um homem de gosto sofisticado. - comentou Lorena. Ela tinha um shot de tequila intocado à sua frente.

- Eu sou. - ele sorriu de novo, mas desta vez pareceu mais sombrio - Por isso gostei de você.

Lorena deu uma risada sarcástica e logo adicionou:

- Essa foi barata demais, Horácio.

- Desculpe. - disse - Faz tempo que não encontro uma mulher que valha as minhas melhores cantadas.

- Por que você não tenta? - desafiou Lorena, depois virou seu shot - Você parece capaz de me impressionar.

- Sabe por que eu gosto de mulheres de cerveja?

Ela esperou pela resposta.

- Vocês sabem beber todo o tipo de bebida de um jeito sexy. É um prazer pagar bebidas para mulheres assim.

- Nós também não ficamos bêbadas facilmente. - adicionou ela e pediu por mais um shot de tequila.

- Eu não sei você, mas eu estou aqui por um desafio. - disse ele, aproximando seu rosto perigosamente.

Lorena não se afastou.

- Você parece esse tipo mesmo. - disse ela, com um sorriso desafiador - Um predador.

Houve uma pausa. Miraram um ao outro em um jogo de quem aguenta mais. Desistiram juntos.

- Meu porche está aí fora. - disse ele.

- Só há um porche em que eu nunca andei. - comentou Lorena, ainda sorrindo - O Boxter Spyder.

Ele sorriu com uma empolgação contida e disse:

- Então é o seu dia de sorte.

Lorena acabou com seu shot, Horácio acabou com seu whisky. Saíram juntos do bar.


Naquela noite, chegou ao fim as mortes do Canibal de Kilrush. Lorena nunca mais foi vista pela região.

28.10.10

Inveja

Tenho inveja de você que é. Mesmo que não perfeitamente, faz. Você que me faz sentir para trás. Tenho inveja de você. Da tua coragem, das tuas escolhas. Tenho inveja da tua fome voraz.

20.9.10

19.7.10

Transformação

Sem dúvida, era belo. A doença tinha um poder perturbador de manter suas características mais fundamentais e embelezá-las sem distorcê-las. Os olhos, no entanto, eram outros. Agora, emanavam a intenção assassina que jamais pertenceu a sua natureza. Eu entendia como eles atraíam presas fáceis como os humanos, mas não entendia como, em essência, poderiam ser mais sedutores que os originais. Não eram. Era isso o que mais me entristecia em sua transformação.

4.6.10

DeMarisa

Marisa andava com os pés nus sobre a terra batida. Os cabelos ondulavam na ponta e oscilavam na frente dos olhos travessos, que brilhavam quando ria de mim. Ela ria muito de mim.

Eu era seu braço direito, um menino sem virtudes. Ma apegara a ela porque ela gostava de mim e também porque ela me protegia dos bichanos. Eu a seguia por todo canto, como uma sombra desajeitada. Por um bom tempo fui chamado de “Mariso”, porque jamais me desgrudava de Marisa. Ela nem ligava.

Um dia, Marisa teve de ir. Sua mãe era a moça mais bonita na Vila, aquele tipo de mulher que todos os homens olhavam quando passava. Até mesmo meu vô Nico, um sujeito que não se dava bem com palavras, enchia a boca para falar das qualidades vistosas dela. E, por tudo isso, Marisa teve de ir. A mãe virou uma atriz lá na cidade; uma atriz que depois de dois anos ia virar capa de revista.

Não foi muito que ouvi de Marisa depois disso. Não cheguei nem perto do futuro glamoroso da menina: a mãe, num jogo de contatos, ajudou-a no sonho de ser pintora moderna. E através das notícias esporádicas, imaginava que fosse muito diferente da Marisa que conheci. Nas fotos, era uma mulher poderosa, de olhar gélido. Em um ensaio de revista de luxo me parecia tão obscura que então decidi de vez que aquela não era Marisa. Que – talvez – eu nunca tivesse conhecido uma Marisa. Amiga imaginária.

Engano meu.

Marisa agora me olhava diretamente dentro dos olhos. E mesmo na escuridão daquele quarto, eu podia ver: era Marisa, dos pés nus e dos olhos travessos. Sorria de um jeito misterioso, um jeito meio Marisa-menina, meio Marisa-pintora. Me prendia todo. Me congelava.

Depois de tantos anos, tanto tempo não acreditando na existência de Marisa, ela estava ali. Os cabelos ondulados nas pontas, os olhos brilhando, aquela risada de zombaria. Os seios descobertos, o cheiro de moça de cidade. Lábios maduros. Marisa da Vila, filha da mulher mais linda, nos meus braços. De repente, me dei conta, Marisa ainda me tinha.

“Você é um homem. Um tanto desajeitado, mas é.” – ela perdera o sotaque. Seria possível que eu a amasse desde aquele tempo, de quando tinha medo de gatos? Seria possível que tal amor durasse tanto? Às vezes, eu pensava muito e falava pouco. Espantei minhas perguntas.

“Eu sempre fui teu, Marisa.”

17.5.10

Sala de espera

Na sala de espera, não se pode falar alto. Não se pode dançar, cantar, às vezes nem conversar. Não se pode mudar o canal da TV ou trocar o tipo de revista. Não se pode olhar o outro sem constrangimento.

Mas pode beber água ou quem sabe café. Pode sentar, ficar parado, ouvir o telefone tocar. Olhar num ponto fixo, pode pensar. Sentir-se aflito, abandonado. Pode também rezar.

É pouco que podemos, na sala de espera, senão esperar.

3.5.10

Impossível

Quando visualizei Nádia sentada no banco mais escondido do jardim, eu sentia tudo, menos raiva. Ela chorava inconsolável a traição recém descoberta, isolando-se na humilhação que sentia. Pouca luz chegava àquele ponto, mas era possível enxergar claramente a dor através da expressão contorcida.

- Estou procurando por você há meia hora – anunciei minha chegada, para não assustá-la. Mesmo assim, percebi um sobressalto delicado, como todos os seus modos habituais.

- Olá, Pedro. – disse ela, limpando lágrimas das bochechas.

Ela estava linda. Eu jamais lhe diria isso, pois era um momento terrivelmente inconveniente para tais gentilezas. Porém, não pude deixar de pensar como a tristeza lhe iluminava. Seus olhos pareciam duas belas pérolas negras, brilhando em melancolia.

- Você está bem? – perguntei, ciente dos últimos acontecimentos da festa.

Ela parecia exausta. A maquiagem havia sido lavada pelas lágrimas, o vestido estava arruinado pelos galhos secos e os sapatos, cobertos por borrões de terra. Eu gostava de vê-la assim, tão naturalmente composta, como uma obra de arte visceral. Minha mãe, porém, jamais a deixaria voltar para o salão da casa principal.

Em resposta à minha pergunta, ela soltou um suspiro tremido e cheio de mágoa. Quando percebi que ela voltava a chorar, sentei-me a seu lado para acudi-la. Contornei seus ombros com meu braço e ela se aninhou em meu peito. O calor que seu corpo emanava era aconchegante; a proximidade me causava uma sensação divina. No entanto, de toda aquela intimidade, era o toque de sua pele que arrepiava os pêlos de meu corpo.

- Você está com frio? – ela perguntou. Eu não respondi. Apertei-a contra mim e desejei que aquele momento durasse para sempre.

Em alguns minutos, o ritmo de sua respiração era mais calmo. Perguntei-me o que estaria pensando; se era em mim, seu ombro-amigo. Se ela agora me via como algo além disso; se ela sentia, como eu, aquela ligação especial que tínhamos. Se gostaria de me beijar. Nesse instante, ri de mim mesmo. Aquilo era impossível e eu sabia. Ela jamais me veria da maneira que eu desejava.

- Eu não vou voltar à festa. Eu não posso. – sua doce voz falhou, então tomou fôlego para continuar – Ele ainda está lá. Com ela.

- Você não deveria se envergonhar, Nádia. – eu disse, me enchendo de ódio contra o homem que a tratava tão mal – É ele que deve ir embora e nunca mais voltar.

- É uma questão de interesse, Pedro. Ele e sua família sempre serão sempre bem-vindos em qualquer lugar. – retrucou ela, desanimada.

Mais algum tempo ali, junto dela, e comecei a sentir que éramos um só. Unidos no bater do coração, sincronizados como deveriam as almas gêmeas. Ela estava tranqüila; eu não poderia estar mais orgulhoso. Toda vez que eu fazia algo por Nádia - minha Nádia - eu sentia que ela me pertencia inteira. E que nenhum outro homem neste mundo poderia cuidá-la melhor.

Quando ela se levantou para ir, eu a segurei pelo pulso. Esse era sempre o momento mais doloroso. Eu sabia que se a detivesse delicadamente, ela se viraria para sorrir uma última vez. Também sabia que ela colocaria um fim naquele momento terno.

- O que foi, meu irmão? Precisa de alguma coisa?

- Não, minha querida. – eu desmoronava por dentro - Eu aviso nossa mãe que você resolveu se recolher.

22.4.10

Reparação

Menina Julia é uma estrelinha de 12 anos, favorita de mãe e de professora. Sempre fantasiou sua vida adulta naquele ponto alto: ganhando seu dinheiro, dona da sua própria casa, amada por um marido carinhoso e mãe de um filhinho precoce que já sabe soletrar. Sonha em ser heroína da família grande e de várias crianças carentes. E jamais vai perder a humildade - aquela que ganhou de sua origem. Afinal, se nasceu na comunidade, para sempre será da comunidade.

Tão puro é o coração da menina, que talvez essas coisas se concretizem mesmo. Então Julia vai ser aquele exemplo de mulher guerreira, que ajudou um mundo de gente e tem sua biografia escrita em formato best-seller. Talvez vire alvo de um repórter europeu que busca uma história tocante do país de terceiro mundo e tenha sua vida narrada em francês. E quando morrer de velhice, aos 97 anos, vai virar manchete de jornal burguês.

Fica, no entanto, a questão: Mesmo que um escritor famoso consiga florear essa narrativa e transforme-a em um clássico que seja traduzido para todas as línguas conhecidas; mesmo que Julia se torne um nome tão imortal quanto Romeu ou Julieta; mesmo que todas as testemunhas de sua história original já não existam, nem possam esclarecer os erros dessa continuação romanceada, algo muda sua realidade?

Pode, Briony, um erro ser reparado por um ato tão passivo?

Não é o leitor que não se satisfaz com um final caótico, mas sim o Senhor Absoluto de um Universo minuciosamente controlado.

Só ele e todos os seus pedaços coordenados.

7.4.10

2.4.10

O Vestido

Quando puxou a cortina bege de lado, algo pinicava em um lugar inalcançável do braço direito. Quatro rostos se iluminaram, colocando-a no centro das atenções. Suas melhores amigas, sua irmã e sua mãe, esta última à beira de lágrimas.

Havia um banco no centro de três altos espelhos e uma moça baixa aguardando com a fita métrica pendurada no pescoço. Ela sorriu de leve e lhe estendeu a mão, para ajudar a subir no banco sem rasgar o vestido. Claro, o vestido.

O alvo branco brilhou em um raio de Sol que entrava pela janela. O tecido escorria liso até o chão mesmo contando a altura do banco e, nos seios, pequenas flores subiam bordadas pelos cantos, ornadas com contas peroladas. O tomara-que-caia valorizava muito bem seu colo e fez as quatro espectadoras suspirarem.

À sua frente, três imagens oscilavam, vestindo seu vestido, balançando seu véu, mascaradas com sua maquiagem. Eram lindas, as três, tanto quanto diferentes. A primeira, que mostrava o ângulo direito do vestido, achava-se fabulosa. Sorria em plena felicidade e ansiedade. Era a pura, menina virgem, cheia de sonhos, planos e antecipações.

A segunda, do meio, era a que a encarava diretamente nos olhos. Era questionadora, séria e rígida, como uma professora zangada. Parecia julgá-la com superioridade, cheia de dúvidas sobre aquele lugar em cima do banco. O que aquilo significava? Os rostos chorosos, sorrisos largos, gritinhos de excitação? O que significaria, afinal, tanta emoção? Um vestido, símbolo de quê exatamente?

A última, da esquerda, era radical. Fantasmagórica, transbordava raiva e rancor. Odiava seu lugar dentro do vestido cerimonial, o corpo sufocado por um momento vazio. Cuspiria na cara emocionada da mãe, da irmã, das amigas. Sairia nervosa em direção à rua e jamais voltaria. Não em sã consciência.

A ocasião se passou em meio a comentários românticos, às vezes amargos, às vezes invejosos. As mulheres juntas tendiam a falar de homens e da vida alheia. A festa por vir as encantava tanto que as deixavam tagarelas mesmo nos momentos em que os assuntos morriam. A costureira trabalhava sem parar em detalhes invisíveis.

- Você é a noiva mais linda.

Ela sorriu, de costume. Deu uma volta, para encerrar o show. Quando saiu do vestido – com cuidado, é claro – se viu sentindo apenas uma coisa: alívio por se livrar da pinicada no braço.

Mais tarde, quando a agenda do dia havia acabado, pôde encontrar Diego na entrada do barzinho favorito. Ele lhe sorriu, daquele jeito que a conquistava toda e cada vez, e ela o abraçou. Forte o suficiente para saber que não queria se casar. Não queria o casamento.

Era aquele abraço: quente, apertado, íntimo. Era ele que satisfazia a menina sonhadora, calava a ansiedade questionadora e acalmava seu lado mais radical. Era ele, e somente ele que fazia qualquer sentido.

Mais nada.

25.3.10

Desperate Housewife

Quando Lucélia acordou naquela manhã, tudo parecia perfeitamente normal. O Sol do verão já entrava pela janela do quarto, o rádio-relógio tocava exatamente às 8 da manhã e o lado esquerdo da cama continuava vazio. Não apenas vazio, mas perfeitamente arrumado: o lençol branco por baixo do edredom azul, com detalhes bordados em branco, alinhado paralelamente com o travesseiro, cuja fronha fazia conjunto com o resto. Tudo no mesmo lugar em que ela colocara antes de se deitar, em uma cerimônia de todas as noites desde que se casara. A cama de casal era seu móvel favorito dentro da casa, pois lhe maravilhava a idéia de uma cama para dois corpos; um símbolo de união. E agora, aquilo perdia todo sentido.

Percorrendo o corredor do andar de cima, chegava ao quarto cor-de-rosa de Lili. Ela dormia, naquele sono tranqüilo dos inocentes. Não era uma criança difícil, na verdade, era até muito fácil. Jamais chorava ou reclamava ou demandava qualquer trabalho. Apenas alimentação e troca de fraldas, tarefas para as quais qualquer mãe estava sempre pronta.

Depois que verificava Lili, deveria preparar o café da manhã. Descia a escada de ipê, degrau por degrau, e passava pela sala, decorada com o clássico bege-fácil-de-lavar. Nesse ponto, tinha que atravessar o cômodo e chegar à cozinha, mas, naquela manhã, algo parou Lucélia. Um borrão se mexia por trás do vidro da porta da frente, em movimentos incertos, e a única coisa que lhe passou pela cabeça foi que não ouvira a campainha.

Poderia ser um ladrão, um suspeito que andava pela vizinhança. Mexia-se para longe e para perto da porta, como se estivesse indeciso. Lucélia o observou por alguns segundos, através da distorção do vidro, pois queria ter certeza de que não colocaria sua filha em risco. Decidiu então, não soube se por curiosidade ou porque já não agüentava mais ver aquela sombra indo e vindo, abrir a porta.

Era um homem de estatura mediana e cabelos pretos (apesar de alguns pontos brancos), vestindo uma pesada jaqueta de couro marrom. De costas, poderia ser qualquer estranho desistindo da visita, mas quando se virou, os olhos esverdeados encontraram-se diretamente com os dela. Lucélia sentiu as pernas fraquejarem, como há tempos não acontecia, e, por frações de segundos, ela pensou estar em um sonho.

“Michel”, disse com a voz fraca, e o homem congelou onde estava, a meio caminho de chegar a seu carro.

Impelida por uma saudade dolorida, Lucélia correu. Correu mais do que suas pernas agüentavam, pois precisava alcançá-lo. Pouco antes de poder tocar sua jaqueta de couro com a ponta dos dedos, ela se jogou. Ele, surpreso, teve de usar os braços grossos para segurá-la.

“Michel! Michel! É você!”, soava como uma lunática em meio a um ataque.

O homem olhava para os lados, preocupado. Resolveu levá-la para dentro em seus braços, sem dizer uma palavra. A um passo da porta, porém, ele hesitou. Já fazia muito, muito tempo.

“Deus! É um milagre... de Deus!”, ela falava com ninguém, talvez consigo mesma. Ele a colocou sentada no sofá.

“Onde você estava? O que aconteceu? Você está bem? Teve que matar alguém?”, as perguntas saíam pela boca logo que surgiam na cabeça, mas o homem se manteve em silêncio. Olhava em volta com um olhar denso, profundo, um pouco obscuro. Alguns minutos depois, resolveu se sentar na poltrona, longe dela.

“Eu estou bem. E você?”, foi o que conseguiu dizer.

“Estou bem! Aliás, estamos bem!”, ela respondeu, e antes que ele conseguisse dizer mais alguma coisa, ela sumiu escada acima, toda energética.

Sozinho na sala, ele suspirou. Questionou-se sobre o que fazia ali, se valia mesmo a pena. A menina esperava no carro por ele, morrendo de medo. Ela dissera isso no caminho, enquanto ouviam algum rock antigo que passava no rádio, “Pai, estou morrendo de medo.”

Lucélia voltou com um sorriso radiante no rosto, quase desumano. Carregava sua Lili no colo, os olhinhos esbugalhados como se estivesse assustada.

“Veja como está linda, saudável! Com saudades do pai.”, disse a mulher.

O homem esboçou um sorriso, com certo esforço. Sabia que aquele seria o momento mais difícil, a hora que talvez quisesse sair correndo porta afora. Felizmente, conseguiu se segurar.

“Precisamos conversar, Luci. Muito sério.”, disse sem rodeios e Lucélia perdeu o sorriso.

“Diga, Michel. Diga, meu amor.”, ela se sentou no sofá, sem largar Lili.

“Você precisa parar de dizer para a polícia que estou desaparecido.”

“Mas você estava desaparecido! Agora eu posso parar, porque você está em casa!”, disse ela.

“Luci, eu tenho uma nova família agora. Você entende o que estou falando? Ela está grávida. Eu amo ela.”, ele falava devagar para que ela não perdesse nenhuma palavra.

“C-Como assim? Você... Você... Seu...”, a voz sumiu para dar lugar a grossas lágrimas.

“É isso mesmo, Luci. Eu tenho outra família, outra casa. Você tem que parar de dizer que estou desaparecido.”, ele continuava com o tom de um professor pré-primário.

“NÃO! VOCÊ NOS DEIXOU POR OUTRA FAMÍLIA?! E A LILI? E EU? VOCÊ NÃO PODE FAZER ISSO, SEU... SEU!”, Lucélia se levantou afobada e berrava a plenos pulmões. O visitante também se levantou, para tentar acalmá-la. Tinha também medo que ela o atacasse de alguma forma.

“E a nossa casa? E a nossa família? Como você foge assim sem mais nem menos? Como você tem coragem?”, a voz dela não estava mais alta, porém soava quebrada, magoada.

“Luci, eu não saí sem mais nem menos. Eu –“

“NÃO! Sai daqui, seu canalha! Nem eu, nem a Lili precisamos de alguém como você. Sai, sai, sai!”, agora ela indicava a porta com um dedo trêmulo, enquanto segurava Lili com o outro braço.

“Luci, por favor, entenda.”

“Saia.”, disse em tom conclusivo.

O homem andou em direção à porta, cabisbaixo. Odiava estar ali, naquela sala. Não havia mudado nada desde a última vez.

“Você vai parar de dizer que estou desaparecido?”, perguntou ele, com metade do corpo para fora da casa.

“Saia.”, as lágrimas escorriam livremente pelo rosto contorcido de dor.

Ele foi, sem nem olhar para trás. Na sala, Lucélia derrubou mais algumas lágrimas e depois acariciou Lili, preocupada que ela estivesse estressada. Deitou-a no colo e os olhos fecharam imediatamente. Quando a levantou para abraçá-la, os olhos de plástico se abriram, revelando um verde artificial. Os cotovelos inflexíveis davam a impressão de que pedia pela mãe.

“Oh, meu amor. Não se preocupe. Estou aqui, sempre estarei.”, disse Lucélia, calorosamente.

De repente, olhando de frente para Lili, o sorriso eterno fez Lucélia rir. Depois de alguns segundos, ela gargalhava.

“Ah, minha filha, que mãe boba você tem. Confundir aquele estúpido com seu pai! Me desculpe, querida.”

Atravessou a sala, entrou na cozinha e começou a preparar o café da manhã.

11.3.10

Quarta-feira

De seu cubículo, Marta ouvia
Joana fofocando,
Carlos em ligação (pessoal),
Marieta se servindo do café, quentinho.

Percorreu o corredor, disfarçadamente
Alcançou o banheiro feminino
Escalou a última privada
(Aquela abaixo da janela).

E respirou.

3.3.10

Decisão de vida

Ali no morro, Vitor pega a mão de Raíssa, morrendo de medo de estar fazendo alguma coisa errada. Ela usa um vestido azul cheio de flores bordadas na barra e ele a camisa da Igreja, porque é a única que não está furada no sovaco. As estrelas brilham, os grilos cantam aquela musiquinha engraçada e a vista é a mais bonita da cidade. Sob a luz do luar, Raíssa sorri com o mesmo nervosismo que Vitor encosta a mão dele na sua.

- Quer namorar comigo? - ele pergunta, sem olhar para ela.

- Eu quero. - responde a menina, ajetando as dobras do vestido.

Julia observa o morro pela janela de seu quarto. Duas sombras interferem a vista da Lua, juntas demais. Não consegue ouvir o que dizem, mas vê que estão de mãos dadas. Ele, Vitor, e ela, Raíssa. Dois colegas de classe com quem nunca falou na vida.

Deitada em sua cama, ela arranca as páginas de um caderno cor-de-rosa que quando novo exalava cheiro de perfume. As lágrimas percorrem as bochechas inchadas, de criança triste e contrariada. Com um som de rasgo, a folha se solta, amassada, cheia de corações desenhados e letras formando o nome "Vitor". Vitor.

Quando termina o massacre, a menina pega a caneta azul com purpurina e escreve na próxima página em branco, com tanta raiva que a mensagem sai com letras tortas: Eu nunca mais vou amar ninguém.

Fecha o caderno que agora só cheira a sulfite, se enterra no travesseiro e dorme ali mesmo, até o dia seguinte.

22.2.10

Teste de Gravidez

Era Regina que segurava o palito, apesar de Norma ser sua dona. Negativo, anunciou em voz monótona. Negativo, repetiu mentalmente.

Norma olhou-se no espelho, procurando pela outra. Aquela mulher ansiosa, possivelmente grávida. Não encontrou. Então o reflexo de Regina surgiu atrás do seu, os olhos cheios. Não de compaixão, mas de piedade. Aquela maldita piedade.

Ufa, disse Norma, sem sorrir. A amiga sorriu, mas a piedade não desapareceu. Você pode ir, sei que tem muito que fazer, foi o que falou para que fosse embora. Não foi. Norma alargou um sorriso no rosto, uma tentativa fraca. Regina não se mexeu.

E o pai?, Regina era direta. Nunca mais me ligou, respondeu. Perderam-se em pensamentos, nenhuma das duas falou durante alguns minutos. Vou para casa antes que o Fábio chegue, foi a despedida de Regina. Norma a acompanhou com os olhos, mas ficou no banheiro. Ainda se olhava no espelho.

Negativo, repetiu para si mesma. Lavou o rosto, só água. Ajeitou o cabelo desgrenhado e ensaiou o sorriso. Mirou o frasco de Valium, medicado para a insônia. Pagou o batom, passou e saiu.

17.2.10

A sexta da lista

O casarão guardava silêncio mórbido, como era de costume. Raramente, quando a noite caía, era possível testemunhar qualquer uma das tantas janelas completamente iluminadas, limitando-se a pequenos pontos de luz alaranjados aqui ou ali. Por mais que soasse como um lugar assombrado, a simples explicação era que a única moradora e herdeira do casarão se chamava Zeyla Mardi, uma excêntrica escritora de fama limitada aos círculos cult-intelectuais. Uma de suas tantas manias era sempre evitar locais bem-iluminados e acreditar piamente que sua grave miopia se curava aos poucos quando forçada a enxergar no escuro.

Naquela noite, Zeyla se aninhava no largo tapete persa, bem em frente à lareira da sala principal, imersa em meio a um mar de folhas de papéis, completamente preenchidos com textos de sua autoria, alguns descartados outros apenas jogados. Prestava atenção, no entanto, nos únicos cinco recortes de papéis que carregavam textos de outros autores, mais precisamente de repórteres do jornal local. Aquele que segurava dizia em grandes letras sensacionalistas “Joanna Lubrick é a primeira vítima de uma cruel caçada a insubstituíveis artistas consagradas”.

O fogo na lareira crepitava quente e aconchegante enquanto Zeyla tragava um cigarro de sua marca favorita. Havia um sorriso sutil marcando o canto dos lábios finos enquanto lia os recortes e foi um estalo incomum que interrompeu seus pensamentos e chamou sua atenção à parte escura que a iluminação da lareira não alcançava. Sim, ele havia chegado.

- Estou decepcionada, Luke. – disse, agora um sorriso mais largo no rosto, quase como se fosse de prazer.

Um rosto bem modelado surgiu das sombras como um gatuno à espreita, pronto para atacar. Era um homem jovem e bem apessoado, cujo nariz reto fazia uma combinação de perfeita proporção com os redondos olhos verdes. E sorria da sua forma mais magnética.

Zeyla mirou-o com olhos seduzidos. Havia conhecido Luke em sua viagem para o monte Aconcágua, na América do Sul, quando ambos faziam uma parada no acampamento Berlim, o mais próximo ao pico. Era um homem que desde a primeira vista chamava atenção pela sua aparência e conquistava com a fala fina e sofisticada. Bonito, culto e inegavelmente bom de cama.

- Ah, minha querida Zeyla, eu sabia que você ficaria magoada. – disse ele, se aproximando da lareira.

- Não precisava ser a primeira, é claro que não, mas a sexta? E por que aquela pirralha da Joanna? – ela ainda segurava o recorte com a notícia sobre a morte de Joanna Lubrick.

A gargalhada dele dominou o cômodo, como se tivesse ouvido uma piada muito engraçada.

- Você me conhece, Zeyla. Eram tantas mulheres, todas tão apaixonadas...

Zeyla o conhecia muito bem. Depois de Aconcágua, viveram cinco tórridas semanas de paixão ininterruptas, nas quais fizeram todo amor que puderam, escreveram projetos juntos e viajaram para os mais variados destinos. Mesmo sendo 20 anos mais velha que seu companheiro, Zeyla sabia que esbanjava tanta energia e vivacidade quanto ele, mas também tinha outra certeza: a de que ele tinha uma personalidade volúvel, instável, efêmera. Luke era um homem extremamente sedutor, mas acima de tudo misterioso e provavelmente perigoso. E quando ele finalmente se foi, da forma como ela previa, deixou um recado curto e direto: “Quando eu voltar, será para libertá-la.”

- O que se pode dizer sobre essas mulheres que te amaram tanto? – perguntou Zeyla, de forma retórica – Conheci algumas delas, sobre as outras li alguma coisa. Viviam intensamente, até aquele ponto em que incomoda as pessoas.

Zeyla se deixou levar por seu monólogo filosófico e depois tragou seu cigarro mais uma vez. Luke demonstrou-se interessado em ouvir, mas ela se calou, como se esperasse que ele viesse até onde estava.

- Eu sou a última? – perguntou Zeyla, ao perceber que ele não se afastaria da lareira quente e iluminada.

- Não. Tenho vinte mulheres na lista. – respondeu, seco.

- Herói generoso digno de adoração, homenagens, as amantes que quiser. – sorriu ela, falando em tom irônico.

Seguiu-se o silêncio, à exceção do crepitar do fogo. Ele se aproximou com jeito tranqüilo de quem está prestes a cumprir uma função rotineira, mas Zeyla sabia reconhecer seu modo ameaçador de observá-la. Ela não se moveu.

Quando Luke estava perto o suficiente, Zeyla sentiu a fragrância de sua colônia e teve vontade de abraçá-lo, beijá-lo, conquistar mais uma noite grudada naquele corpo perfeito. Ele, no entanto, parou a uma distância longe o suficiente para assegurar que isso não ocorresse e tirou uma bela adaga de prata do bolso, reluzindo como nova, como se nunca tivesse sido utilizada. Mas Zeyla sabia que ela havia sido empunhada pelo menos cinco vezes antes daquela.

- Você nunca parou para pensar que talvez você seja apenas um assassino em série e nada mais? – perguntou ela, sabendo que tinha pouco tempo agora.

Zeyla tinha o sorriso cínico que caracterizava quase todas as suas fotos na mídia, de um jeito superior e entediado. Luke não pôde deixar de sorrir de volta.

- Zeyla, querida, que tipo de mulher você seria se sorrisse assim para um simples assassino em série prestes a golpeá-la?

Ele não lhe deu tempo para responder. Cortou sua garganta profundamente, como fizera com todas as outras, fazendo sangue espirrar em suas roupas, no cigarro ainda aceso, na lareira crepitante, no caro tapete persa, nas inúmeras folhas espalhadas pelo chão e nos cinco recortes de jornal. E antes que Zeyla perdesse a consciência para sempre, ele lambeu a adaga embebida em vermelho-vivo e falou:

- Não, meu amor, eu sou seu salvador.

10.2.10

Alterego

Leonardo era o tipo de terno, penteado e certo, o tipo orgulho da mãe, favorito do pai, o de maleta e celular smartphone. Lucas não, era o todo errado, era o menino rebelde, um apaixonado. De cabelo esquisito, sujo, mal-lavado, o que somente sabia fazer sua arte: o de tocar violão.

Com tanta diferença, só haveria mesmo um lugar para suportar tanto. Era na estação de metrô que esse extremo contrário convivia, existia, era. Na estação que se fazia o avesso, de um que só passa apressado, sombra cinza obstinada, enquanto o outro era o parar e abrir-se todo para aquela passageira multidão.

Leonardo, tinha que admitir, não era lá muito de música, muito menos de violão. Ouvia, às vezes apreciava, mas preferia as coisas mais lógicas, o passo-a-passo, o racionalmente explicável. Era mais o tipo prático que odiava drama, enrolação. Lucas, por ser invertido, já fazia o tipo viajado, perdido, louco irracional. Gostava do ritmo freado, para sentir, contemplar, se emocionar.

Apesar de no mesmo lugar, Leonardo jamais se deparou com Lucas, nem vice-versa. Pelo menos não na estação. Leonardo era o homem preso a um horário, aquele horário comercial. Lucas era o homem tudo, menos o do horário comercial.

Todos os dias Leonardo acordava às 7:30h e chegava ao escritório às 9h. Nesse horário, Lucas ainda dormia ou estava para dormir. Leonardo trabalhava o dia inteiro, Lucas compunha no entorpecimento. Leonardo na papelada, Lucas nas partituras. Um no computador, outro no violão. Pausa para o café, pausa para outro tipo de som.

Leonardo saía do trabalho às 18h e era só aí que Lucas estava se preparando para ir. Um ia, outro vinha. Convergindo na mesma estação. Quando Leonardo pisava em casa, Lucas já estava pronto, de pé, engatado. Leonardo tirava o paletó, a gravata, a camisa. Lucas esperava, pelo sinal. Leonardo tirava também a calça. Deixava a maleta, o smartphone. Lucas e sua a caixa de violão.

Leonardo trocava, se mudava, se reconstruía. O expediente havia acabado.

Então, aí sim, Lucas saía, chegava e tocava seu violão.

3.2.10

Manchete de Jornal

Durante a madrugada de ontem, a empresária Amanda Pwinki (55) foi encontrada morta a poucos metros da guarita do prédio onde morava. Pelo estado de seu corpo e alegações de testemunhas, a polícia considera que tenha se jogado de seu próprio apartamento no 19º andar, onde residia há mais de dois anos. Dona Jussara, outra moradora do 19º andar, diz que acordou com o estrondo, assim como a maioria de seus vizinhos. “Foi muito alto, eu até achei que estava tendo um pesadelo. Quando olhei, o porteiro chamava por ajuda e outras pessoas estavam observando.”, diz, emocionada. Ela também conta que Amanda era uma mulher amável, apesar de reservada, e que tratava a todos com muito respeito.
Para o ex-marido, Luis Banis, foi uma grande surpresa. “Nós nos encontramos no fim de semana passado para resolver assuntos das crianças e ela parecia muito bem. Ria de tudo, fazia piadas, até achei que estávamos nos aproximando.”, revela, claramente abatido. Amanda e Luis tinham dois filhos juntos, uma menina de 15 anos e um menino de 9, que moram com o pai em um bairro nobre de São Paulo. Luis ainda não teve coragem de dizer o que aconteceu para os filhos e nem sabe como irão reagir.
Para a mãe de Amanda, Marcia, a filha já dava sinais de depressão há um bom tempo. “Ela me ligava tarde da noite para falar de coisas sem importância, eu achava que era porque ela queria conversar coisas sérias e não tinha coragem.”, desabafa a senhora, viúva há dez anos. “Meu marido que conhecia bem a minha filha, dizia que ela era bem transparente e que não estava feliz em seu casamento. Acertou, porque ela acabou divorciando, né?”
No apartamento de Amanda, nada parecia fora de lugar. A polícia encontrou a cama feita, nenhuma louça para lavar, tudo muito limpo e bem arrumado. Em seu quarto, a janela estava totalmente aberta e havia uma carta, que endereçada à sua mãe, dizia:

“Mãe,
A senhora se lembra daquele fim de semana na fazenda do tio Mário? O papai queria me ensinar o nome dos pássaros, mas eu queria mesmo era cavalgar no Luke, o maior garanhão de lá. Fui de teimosa, subi nele quando ninguém estava olhando, tive minha diversão por 2 minutos e caí dura no chão. Lembro que vocês demoraram para me achar e eu ouvia meu nome aos gritos. Fiquei deitada na grama um tempão, sentindo minha perna quebrada, chorando feito tonta, rezando porque achava que iria morrer.
Naquele momento, um pássaro preto – que depois o pai me diria ser um Chupim - pousou perto de mim. Ficou me olhando, me encarando, e deu um pio tão poderoso que chamou a atenção de vocês. Não sei se você se lembra de me achar por causa dele, eu não contei isso para ninguém.
Foi nesse dia que secretamente comecei a desejar ser um Chupim. Ele é pequeno, mas tem um canto alto e voa feito um esnobe. A senhora nem imagina a admiração que tive por ele naquele dia. Cheguei até a montar uma pasta enorme só com informações e fotos dele, que mantive e alimentei por anos a fio.
Com o tempo, é claro, a gente esquece dessas coisas. Nem sei qual foi o fim da pasta, se acabei jogando fora. Nem sei se você um dia chegou a vê-la. É estranho, depois de tanto tempo, eu me lembrar dela, as inúmeras páginas montadas com tanto carinho, tanto sonho e esperança.
Naquela época, acho que eu ainda acreditava em muitas coisas que eu acabei deixando para trás.

Me desculpe, mãe.

Amanda”

28.1.10

De viver

Dona Helena era um tipo de mulher prática e bem vivida. Tão cheia de cicatrizes, que era possível sentir sua dor através do profundo preto de seus olhos. Eram como dois poços de piche, densos, avassaladores para quem os encarasse.

- O homem que ganha o coração assim muito forte e muito rápido, não é homem que dura. Paixão é uma armadilha dolorida, minha filha.

Ritinha sempre foi a versão menor de sua mãe. Ouvia e convivia tanto com ela que aos poucos tomava os mesmo trejeitos, as mesmas palavras. Na adolescência mimetizava tão bem os gestos de Helena, que parecia mesmo um pequeno clone, cheio de personalidade e de confiança em tudo o que dizia. “Ah, se a mulher não trabalha, vive de mendigagem com marido cafajeste.”, dizia para as amigas. “Se fosse eu com seis filhos – Deus que me livre! – arranjava dez empregos, em vez de ficar na rua caçando homem que bate em criança.”, opinava sobre a vida da vizinha. No dia em que pegou três marmanjos mal-tratando um cãozinho de rua, pegou um pau e saiu correndo aos berros para chamar ajuda e dar uma lição neles. Bateu neles até que o último se rendesse e ai deles se voltassem a fazer malandragem naquela vizinhança.

“Esse Marco Antônio olha assim pra todas, não pode ser boba não.” Pois foi quando Marco Antônio entrou em sua vida que o rumo das coisas mudou. O menino era o galã da escola. Alto, atlético, desses com ombros largos e com aqueles olhos verdes de derreter qualquer coração. Ritinha resistiu mais que qualquer outra que Marco já havia posto em sua mira. Xingou, falou mal pra todo mundo, até pregou peças para humilhar o rapaz. Mas ele foi tão, tão insistente que quando já era moça adulta, cheia de um romantismo que sua mãe oprimia com todas as forças, não conseguiu mais fugir. Se entregou de corpo e alma, entregou tão entregada que grudou de vez.

Casaram. Tiveram uma filha que Dona Helena pôde conhecer apenas nos primeiros anos. A mulher, mula teimosa, faleceu de doença fatal, ainda fiel a suas crenças, suas opiniões. Tão crente de si mesma que até fez Ritinha duvidar de seu amor por Marco Antônio e do amor dele por ela. Tanto que ela até chegou a se perguntar se deveria ensinar à sua filha os mesmos ensinamento da avó, que querendo ou não estava certa de muita coisa.

- Dona Rita, a Maíra ligou querendo falar do casamento. Pediu para ligar ainda hoje pra ela.

Ritinha concordou com a cabeça, olhando o mar do horizonte, longe dali, longe da varanda que Marco Antônio construíra anos atrás com seus próprios braços. Os cabelos grisalhos oscilavam ao ritmo da brisa marítima, as rugas aprofundavam quando dava, mesmo que de muito leve, o sorriso sereno. O morno da tarde fazia bem à alma.

O pôr-do-Sol era a cada dia mais tocante. Sozinha, era como a única fonte de calor para seu dolorido coração. E quando os pontinhos brilhantes de luz no azul marinho tomavam o lugar do laranja eletrizante, Dona Rita tinha lágrimas nos olhos. Olhava para a cadeira ao lado, há quatro anos vazia. E voltava para dentro, sempre imaginando se a solidão era melhor sem a dor de uma saudade.

18.1.10

Possibilidades

Ali, por entre as tábuas, Doca parecia feliz.

- Como é o outro lado da cerca?

- Ah, é grande, infinito. - disse o convencido, ciscando no seu território.

- É bom? - grunhou Natan, humilde.

O galo de briga parou e refletiu.

- Nem sempre.

- Por quê? - perguntou o curioso, extasiado com informação de fora.

- Muitas possibilidades.

Doca bateu as asas e chegou do outro lado do campo em vôo defeituoso.
E Natan não pode deixar de invejá-lo.

4.1.10

O próximo bolo

Alguém bateu na porta de madeira duas vezes, de uma forma monótona e contida. Entre, disse Um. O Outro entrou, o pedido de desculpas em uma mão e nada mais. Olá, disse o Outro. Olá, disse Um. Os dois se olharam por alguns segundos infinitos.
Não havia exatamente um motivo concreto, todo entendido por ambas as partes. Alguém admitiu que era culpado, teve aquele que concordou, gerou briga, levou a palavras que não se podia pronunciar. Quem diria que estariam ali agora? Um se mexeu de incômodo, orgulhoso demais para continuar a conversa. O Outro estava tão perdido que ensaiou a expressão de tristeza.
Assim não vamos a nenhum lugar, disse Um. O Outro não entendeu, mas balançou a cabeça concordando. Você sabe por que estou assim?, perguntou Um. Eu comi sua parte do bolo, respondeu o Outro, tentando a voz mais suave que podia. Não, disse Um e agora estava com a cara fechada. Então?, perguntou o Outro, e Um não respondeu. Você não entende nada mesmo, disse Um depois da pausa e nada mais foi dito.
O Outro estava com medo de falar, porque geralmente estava errado. Um tinha raiva de que o Outro não dissesse nada por não saber, porque deveria saber e ele nunca sabia. Não era nada por causa do bolo, era o que ele simbolizava. E o Outro não entendia nada disso, porque geralmente só via o bolo, que sempre lhe parecia pouco demais para virar briga.
Me desculpe, disse o Outro. Um estava irredutível, decidido a morrer pela sua causa. Vá embora, disse Um. O Outro foi, porque sabia que naquele ponto nada mais poderia ser dito. Um o viu ir pelas costas e, sozinho, percebeu que não lhe restava nada senão chorar.

Na manhã seguinte Um sorria porque não queria mais chorar pelas coisas que já nem eram tão importantes e o Outro sabia que mais cedo ou mais tarde, o próximo bolo viria.