24.12.12

Querido Estranho

Hoje eu pensei em você. Nessa sua vida longe da minha, essa sua rotina que eu não conheço. Considerei seus problemas, aqueles desejos para depois. Hoje, lembrei da gente, eu e você, um tempo breve e passado. Senti saudade, sabe? Fiquei pensando o quanto gosto de você.

É certo que você não se sente assim sobre mim. Quero dizer, eu não posso saber. Talvez você pense em mim, provavelmente com desgosto. Talvez você seja um dos poucos que gostaram de mim. Mas eu gosto, mesmo assim, de você. Você que só lembra do meu nome. Que acha que eu nunca me importei. Você mesmo, com quem eu nunca conversei. Ou então você, com quem tive tanto contato, mas para quem nunca demonstrei. O quanto gosto de você.

Você tem a certeza de que eu nunca parei para olhar você. Enxergar o quanto você é bonito e o quanto eu gostaria de saber mais sobre você. Mas eu paro, sim. Hoje foi um desses dias, um dia para lamentar o quanto o perdi quando perdi você. A oportunidade de te ver, de conversar e conhecer. Já era. Mas a verdade é que eu ainda gosto - e muito - de você.

Espero que você seja feliz. Todas aquelas conquistas, essa vida que você anda construindo. Pode não fazer a mínima diferença, mas eu torço por você. Quando eu sei que você venceu, eu estou aqui, me emocionando e gritando com você.

Não acredita? Tudo bem. Eu nunca quis ser alguma coisa para você. Se um dia teve contato comigo e prestou alguma atenção, sabe que eu sou dessas que fica longe mesmo. No fundo, eu só queria que você soubesse o quando eu gosto de você.

13.12.12

Futuro de Amanda V

Era apego que transbordava dos meus olhos durante a longa tarde em que se fez seu funeral. Apego por ela e tudo o que representava: o amor, a confiança, toda aquela felicidade que agora perdera sentido. E também o futuro.

No começo, soou como um trote mal feito. Chegou por meio de um telefonema e caiu como uma bomba pretensiosa: Amanda se suicidou. Por alguns instantes, não soube se ria ou se ficava bravo, mas um fato agravou a notícia e fez com que parecesse palpável: era a voz da mãe dela, uma pessoa tão dada a piadas quanto um servidor de repartição pública.

Foi assim que a notícia chegou, seca, com uma rasa explicação depois. Um câncer havia sido descoberto, em segredo. Ela escondera os exames, sofrera sozinha. Mas havia espaço para uma batalha, com chances otimistas, e ela se rendeu. Sem buscar ajuda, dar qualquer chance à força e companheirismo dos seus. Nem mesmo a mim.

Ficamos todos à deriva na tragédia, como em pequenos botes individuais e sem remo. Por quê? Desde quando? A culpa é minha? Eu poderia ajudar? Ainda que as perguntas fossem as mesmas para todos, a busca pelas respostas era solitária.

No fim, era inútil. Amanda levara tudo consigo: suas razões, acusações, dúvidas. Sua história e o seu futuro, mesmo que incerto. No meu caso, também o meu futuro. Roubara de mim todos aqueles planos, as expectativas, esperanças -  que não significaram nada quando ela tomou a derradeira decisão. Tudo mentira?

A dor de sua negligência em relação a tudo o que havíamos vivido e prometido juntos era dilacerante, como uma faca que afundava em meu estômago a cada gole de aceitação. Ela não pensou em mim... Pior! Não confiou em mim para assumir sua luta e dividir seu peso. Não, não era mulher forte e determinada, talvez nem mesmo me amasse.

Quando enfim me acomodei na ideia de sua traição, afundado num breu de decepção, sua voz me resgatou. Vinda de um passado recente, revelando sua outra intenção. Um sopro positivo, levemente angustiado, mas afirmativo:

“Eu quero mais. Muito mais.”

Futuro de Amanda I
Futuro de Amanda II
Futuro de Amanda III
Futuro de Amanda IV

4.11.12

O Futuro de Amanda IV

Na maior parte de tempo, quando completamente imersa em uma tarefa, vinha a sensação inconsciente de que a veria mais tarde, voltando do trabalho, de um passeio ou, quem sabe, de uma viagem de alguns dias. Já fazia alguns meses. A agenda lotada me ajudava.

Em casa, vivíamos como o espectro de uma família. Era silencioso. Meu pai andava ansioso e também mais apegado a mim. Minha mãe, por outro lado, havia se distanciado a tal ponto que eu podia contar nos dedos as palavras que havíamos trocado desde o incidente. Ah... o incidente.

A ausência de Amanda não foi novidade. Há mais de ano que nossos compromissos nos distanciavam uma da outra. A faculdade, os estágios, cursos e projetos paralelos... Estávamos crescendo, certo?

Por isso mesmo a falta de sua presença não representou uma grande mudança na minha vida. Também me envolveu em uma ilusão cruel de que ela estava ali, sim, mesmo que longe. E quando a realidade caía em minha cabeça – de novo e de novo – como uma rocha maciça, a dor era grande. Uma tristeza me dominava, sem resistência, me enterrava e me jogava em uma escuridão esmagadora. Sensação da morte.

Não chorei quando soube, não chorei durante o enterro e também não chorava nesses momentos. Em vez disso, sufocava. Não éramos irmãs próximas, dificilmente melhores amigas. No entanto, sentia-me perdida e sozinha como jamais antes. Como poderia continuar, dar os próximos passos? Ela era a desbravadora. Se em muitos aspectos guardávamos diferenças, sua força me inspirava. Notei que, na verdade, era vital.

Abandonada. Eu era tão ridiculamente dependente? Odiei-me por me sentir assim. Odiei-a ainda mais por ter me deixado. Maldita Amanda. Fugiu sem explicações; escolheu o caminho fácil. Tomou uma decisão estúpida sem nem se importar. Eu não precisava dela.

Foi durante a arrumação de suas coisas que descobri o inverso. Dentro de um envelope branco, no qual vinha impresso seu nome completo, em uma folha branca preenchida com termos técnicos e formais, números e palavras que, em meu entendimento limitado, soavam como aviso. Não. Uma condenação.

Era ela que precisava – precisou - de mim.

(Continua...)


Futuro de Amanda I
Futuro de Amanda II
Futuro de Amanda III
Futuro de Amanda V

30.10.12

O Futuro de Amanda III

A morte é obviamente algo natural, ainda que as pessoas insistam em se chocar em cada uma delas. Também dolorosa, é claro, mas sempre natural. O que não é natural é despedir-se tão cedo e tão definitivamente de um filho. Foi esse pensamento que guardei ao ver meus pais desolados ali, à beira da cova precoce.

Ser pai nunca foi fácil ou adequado a mim. Era o caminho inevitável, mas chegou tão assustadora quanto inesperadamente e eu juro que fiz meu melhor. Inegável apontar que Amanda facilitou. Eu sempre soube que não poderia desejar uma criança melhor. Mesmo assim, acabamos neste fim.

Sua força sempre foi razão de orgulho para mim. Era esperta, enérgica. Quando me confrontou pela primeira vez eu quase não me aguentei de raiva, mas também soube que ela estava crescendo. Tinha opinião, suas próprias ideias sobre a vida. Por mais que me doesse o conflito, orgulhou-me vê-la tão independente.

Eventualmente, a outra também floresceu - a sua própria maneira. Porém, era em Amanda que eu via a força vital, desbravadora, vencedora.  Na minha cabeça, seu futuro brilhante era certo, praticamente decidido. Teria tudo, seria feliz. Eu, como pai, tinha acertado.

Custou-me alguns dias de choque e mais algumas noites de lágrimas para finalmente perceber que não, não havia sucedido. Pequei no mais inimaginável dos aspectos: sua fraqueza. Subestimei seu tamanho, sua influência. Ainda tinha dificuldade de acreditar, mas a lápide que levava seu nome não deixava me enganar. Era fraca – e eu não pude deixar de sentir certo desprezo.

Sua ação deixava apenas dor e perguntas para trás. Por quê? Foi a falta de uma declaração aberta: eu a amava. Talvez ela não nos amasse o suficiente. Por quê? Seu futuro era lindo. Ela não conseguiu enxergá-lo. Por quê? Agora, havia se destruído. Não era, não estava. Não existia. Por quê?

Estaria em um “lugar melhor”? Dificilmente. Era reconfortante pensar que estava, sim, em algum universo paralelo onde ainda pudesse crescer, desenvolver-se, construir uma vida e ser feliz. No entanto, o melhor lugar era aqui, onde poderia me tocar com todas as suas conquistas. Aqui, onde sua presença provaria sua existência; não ficaríamos relegados a teorias tolas. Aqui, comigo, até o dia em que seria ela – não eu – a ter que se despedir.

(Continua...)

Futuro de Amanda I
Futuro de Amanda II
Futuro de Amanda IV
Futuro de Amanda V

13.8.12

O futuro de Amanda II


Amanda era inteligente, verdade. Esperta. Forte. Crescera uma pessoa boa, fiel. Motivo de orgulho para qualquer mãe. Possuía diversas qualidades, trazia suas próprias marcas, muitas das quais jamais entenderia. Mas, acima de tudo, era jovem.

Até onde sabia, Amanda era uma garota feliz. Tinha sua família, namorado, trabalho. Não era perfeito, porém, evoluía com perfeição. Praticamente mulher feita, prudente o suficiente para trilhar um caminho de sucesso. Feliz, porque sabia muito bem o que queria, ainda que cedesse a uma tristeza eventual. Tinha vida, tempo, energia. Futuro.

Por isso, o velório passou-se tão melancólico. “Tão nova, tão cedo.” Comentários sobre os possíveis motivos de sua terrível decisão. O caixão ficou fechado durante toda a cerimônia, pois optara por não preservar seu corpo. De todos os seus atos, aquele era o que mais machucara Íris. Era cruel enterrar uma filha, mas doía não poder vê-la pela última vez. Íris encarou o fato como um último castigo, mesmo sabendo que Amanda nunca o faria conscientemente.

Sabia que a raiz de sua culpa vinha de um tempo em que sua primogênita era nova demais para guardar os acontecimentos na consciência. Nascera num ambiente conturbado, cheio de problemas, dúvidas e discussões. Íris havia feito seu melhor, mas a urgência em sobreviver superou todo o resto. Nesse turbilhão, Amanda foi muitas vezes esquecida.

E se tivesse brincado mais com a pequena? Oferecido mais carinho, mais amor? E se tivesse lhe dado mais do seu tempo, em vez de desperdiça-lo em lágrimas e preocupações? Teria ela chegado a esse fim?

Sua pergunta mais importante, no entanto, era outra: poderia ter evitado esta trágica conclusão? Amanda era, em muitos aspectos, misteriosa. Se tinha motivos para se deprimir a tal ponto, nunca os revelou. Nem sequer demonstrou, implícita ou explicitamente. Mas, se os tinha, era sua obrigação como mãe percebe-los. E por dias, até meses, ficou revivendo cada momento ao seu lado, esperando captar algo novo, qualquer coisa que denunciasse sua inclinação. Não conseguiu.

No meio do caminho, falhara. Seus erros alcançaram tal nível que perdera uma filha e – pior - não seria capaz de mudar o fato caso voltasse no tempo. Se Amanda a culpava, nunca lhe acusou. Porém, não diminuía sua responsabilidade.

Estaria sua caçula a salvo? Teve medo. Uma de suas filhas não tinha mais um futuro. A outra poderia estar seguindo o mesmo rumo. Quantas vidas conseguiria arruinar? Não queria saber. De uma coisa tinha absoluta certeza: não deixaria que acontecesse de novo, independente do que tivesse que sacrificar.


(Continua...)

Futuro de Amanda I
Futuro de Amanda III
Futuro de Amanda IV
Futuro de Amanda V

4.8.12

O futuro de Amanda I



“Eu quero mais. Muito mais.”
Amanda encerrou o recado sem despedidas, desligou o celular e o enfiou em um dos bolsos da calça jeans. Uma lágrima descia pela bochecha, solitária. Não queria criar um drama maior do que o necessário.  Aquele redemoinho, que revirava seus órgãos de cima a baixo, desde a cabeça até as entranhas, era suficiente.

Naquele instante, o mundo caiu em suas costas e não conseguiu mover mais nenhum dedo. Sentiu a brisa dar movimento aos fios rebeldes do cabelo curto e deixou que o peso lhe esmagasse pouco a pouco. No peito, uma pequena esfera crescia, pesada, e puxava-a para frente.

Amanda estava sentada na mureta de uma laje mal vigiada. Queria chegar ao topo de um prédio e ver o céu sem os limites dos corredores urbanos. Lá em cima, podia deleitar-se de uma tranquilidade rara e observar o voo amplo dos pássaros. Quem sabe sentir-se como um deles...

Impossível. E riu consigo mesma ao pensar nesta palavra.

Tudo parecia possível à sombra de sua tragédia. A garoa de ouro, vinda de um céu rosado, capaz de pintar o asfalto de turquesa, apontando assim o caminho óbvio para as grandes possibilidades: a eterna viagem, as companhias insanas e a carreira proibida. O entendimento entre pais e filha, entre todos os povos, a aclamada paz mundial. Triste, como o menino que observa o doce que não pode saborear, ela sentiu a fagulha. No fundo, em meio à escuridão, aquela fraca pulsação.

Por que não sentir-se como um pássaro?

Lá embaixo, passos apressados e carros barulhentos criavam o fluxo de uma terça-feira comum. Por dois segundos, Amanda compreendeu porque, às vezes, aqueles bichinhos trocavam a liberdade de suas asas por uma espiadinha àquele cenário hipnotizante. Com dificuldade, esticou o braço na ânsia de alcança-lo e então percebeu o tamanho de sua vontade de fazer parte. A bolinha em seu peito apertou.

Sem perceber, estava flutuando. O peso do mundo se dispersou em gotículas de alívio. Calma, foi se afastando da vastidão azul. Quando se deu conta, não teve tempo de pensar em muito. Não se deixou refletir sobre sua vida. Em vez disso, pensou sobre o futuro. O que a esperaria? Encheu-se de inspiração para desvendá-lo.

(Continua...)

Futuro de Amanda II
Futuro de Amanda III
Futuro de Amanda IV
Futuro de Amanda V

27.6.12

Satisfação

O caminho era traiçoeiro. Tão duras quanto quebradiças, as rochas negras criavam armadilhas. Cortavam a pele ao menor contato e exalavam um morno suspeito. A trilha entre elas obrigava o grupo a dar grandes voltas, gastando o dobro da energia para alcançar seu destino. Subiam, escalando com determinação.

Já havia alguns quilômetros que Débora começara a suspeitar das indicações da velha anciã. Sua pele melada, marcada por grossas gotas de suor, reclamava por um banho fresco de cachoeira. Suas roupas tinham rasgos por todo lado, a mochila parecia ganhar 4 kg a cada passo. O pulmão cansado se irritava com o cheiro forte de enxofre, que também fazia seus olhos arderem. Suas mãos pareciam estar em chamas, sensação causada pelos pequenos cortes. Não quis passar os dedos pelos cabelos presos, mas sabia que encontraria apenas nós. E, enquanto suas pernas fraquejavam a cada novo obstáculo, subiam, subiam, subiam... incansavelmente.

"Florzinha difícil de achar, não?", alguém comentou. Débora resistiu ao impulso de sugerir que parassem e voltassem. Era uma das poucas mulheres na excursão e não quis parecer fraca. Além disso, Pedro, que andava um pouco atrás, parecia a ponto de sucumbir. Ele seria o fraco. Ela poderia até esnobá-lo.

O problema é que o garoto aguentou. Débora duvidou de sua força e viu-se pronta a ouvir suas súplicas em diversos momentos, mas toda vez ele resolvia se calar, engolia seco e continuava. Aos poucos, os outros também começaram a exibir sua exaustão. A conversa, que já era rara, transformou-se num silêncio mórbido. As respirações eram audíveis, os passos estavam pesados. Enxugar a testa com o braço, fazer pequenas pausas para descansar e recalcular o perigo da trilha, beber água em maior quantidade, resmungar mais alto pelos diversos machucados. Todos sinais do crescente incômodo.

De repente, alguém tomou a frente e começou "Chega, galera. Eu acho que..." Não continuou. A verdade é que ninguém soube ao certo qual deles havia cedido. Naquele momento, todos ficaram hipnotizados pela imagem que a última grande pedra escondia: acima das nuvens, mergulhada em uma atmosfera onírica. Idílica. Envolvidas pela névoa, as rochas pareciam sombras recortadas emergindo de um oceano branco e macio. Em seus veios pulsavam rios de lava que caíam pelo abismo em cachoeiras fosforescentes. Era quente. Árvores secas, incapazes de sobreviver em meio à secura e ao calor, ladeavam suas margens. Daquele ponto, o céu era de um azul profundo.

Mas era ela, a majestosa cerejeira milenar, encravada no ponto nobre da montanha, que os atordoou. Para Débora, não parecia crível. Não era natural ou coerente. Não parecia algo plausível. Durantes alguns segundos de torpor, ela sentiu que havia passado por um portal. Não era mais sua Terra, era outra - muito mais bela. Um lugar em que aquela paisagem era possível e que qualquer coisa poderia se realizar. Qualquer coisa!

"É ela." A voz de Pedro a acordou. De repente, a consciência retornou ao grupo. Trocalham olhares incertos, cheios de hesitação. O próximo desafio era alcançar a cerejeira e provar de suas lendárias flores. Um eles deu o primeiro passo. Alguns os seguiram. Depois, os outros.

Débora ficou. Observou os outros pelas costas e até fez menção de segui-los. Mas não o fez. Sabia que não precisava. Virou-se para o caminho da volta e sentiu o orgulho abrir um largo sorriso em seu rosto. Estava satisfeita.

Inspiração: http://arcipello.deviantart.com/#/d5118nz

12.6.12

Avante

Seus passos era cuidadosos, milimetricamente calculados. Relevantes.


Caprichosos demais para levá-lo para frente.

1.5.12

The way it hurts

Foi o último zíper aberto da mochila que a fez lembrar daquele dia. Bebia sozinho no bar, de onde podia ver a televisão. Tinha olhos apenas para o jogo. Até o momento em que a viu, o sorriso desafiador. O que era mesmo que a havia seduzido? Provavelmente aquele charme perigoso. Fechou o zíper e esperou.

Havia dias que ele não aparecia em casa. Por isso, a briga foi tão feia. Começou com os gritos, os xingamentos. O babaca nem podia se justificar, porque não tinha o que dizer e vinha completamente bêbado. Passou a noite com as vagabundas, ela acusou. Ele não respondeu. Ela partiu para cima.

Móveis quebrados, paredes socadas. Um olho roxo, talvez dois, dores pelo corpo. Mesmo assim, ela não parou. Provocou e ele avançou. Ela correu para a porta com sua mochila. Ele jamais a deixaria partir.

Segurou-a pelo braço e jogou-a contra a parede, onde a prendeu com o corpo. Beijou-a, primeiro à força. Depois, sentiu seus braços finos puxando-o. Quando a olhou, ainda viu ódio em seus olhos. Ela cuspiu e ele se afastou.

Em vez de agredi-la, como ela esperava, ele alcançou seu isqueiro de estimação. Era o fim. Ele o jogou na cortina, que se incendiou em segundos. Era hora de partir. Ela saiu correndo abraçada à mochila e parou a alguns metros. A casinha alugada em chamas era algo bonito de ver.

Mais uma vez, ele a havia abandonado. Mais uma vez, haviam brigado. Ele a xingou, berrou e agrediu. Destruiu sua casa. Mais uma vez. Ela queria deixá-lo. Ele tocou em seu ombro. Precisamos ir, disse. Ela o seguiu. Mais uma vez.

11.3.12

Da janela

Quando olhei pela janela, senti uma estranheza.
Podia jurar que aquele pequeno prédio espelhado tinha uma parede azul. Mas, naquele dia, exibia um creme sem graça, desses de casinha de interior.

Era certo que alguma coisa havia mudado nele...
Se era a cor, nunca mais poderia saber.

2.3.12

A espera

Andava por um caminho tortuoso. As folhagens densas e os galhos grossos escondiam a estreita trilha de terra e o caminho incerto não permitia que se visse além de um ou dois metros à frente. O ar era úmido, quente e pesado. A cada passo, folhas batiam em seu rosto e, ao olhar para cima, só via as copas de árvores. Estava sozinha e já andava havia alguns quilômetros, mas Marta não tinha medo. Era corajosa, gostava de uma aventura. Era uma menina esperta e cheia de vida

A trilha terminava em uma clareira, onde ficava um pequeno sobrado de madeira. Longas tábuas verticais, pintadas de um tom azul-piscina, desgastadas e sujas, formavam suas paredes. No telhado, faltavam algumas telhas. Nas janelas, alguns vidros. A varanda se estendia por toda a sua fachada e recebia os visitantes com os sons tilitantes do mensageiro dos ventos.

O interior da casa trazia um cheiro fresco, de úmido e mofado. Fora sempre assim. Seus cômodos eram escuros e cavernosos. Abrigavam poucos móveis, pouca ou nenhuma decoração. Não deixava, porém, de ser aconchegante. Marta chamava aquele sobrado de lar desde seu difícil nascimento no quarto do andar de cima. E não o abandonara desde então.

Como toda menina, tinha grandes sonhos. Chegar longe, alcançar o horizonte. Era tão bonita, tão cheia de energia! Poderia ir para onde quisesse... mas não ia. Ia gastando sua juventude nas pequenas tarefas domésticas, em reexplorar a região já explorada, na solidão e nos planos do futuro. Um futuro que nunca chegava.

Não era dada ao medo nem à desistência. Era algo naquela casa, na cor desgastada, na varanda velha, no mensageiro dos ventos... Era algo que era dela e a que ela pertencia. Um pedaço essencial que não a permitia deixá-la para trás.

O dia, porém, chegou.
Marta finalmente iria embora. Não olharia para trás.

Foi até o quartinho, fez sua mala. Poucos pertences. Suspirou profundamente o ar úmido daquele lugar. Visitou cada cômodo, cada lembrança. Lembrou-se dos momentos ternos e dos momentos dificeis. Deixou-se viajar pelas décadas ali marcadas. Permitiu-se chorar pelo adeus.

Mas a melancolia e a nostalgia não a desanimaram. Estava determinada. Era o dia.

Faltava apenas um último cochilo. Deitou na rede, ajeitou o corpo pequeno e frágil. Já não tinha tanta vida, tanta energia ou beleza. Antes de adormecer, viu as copas das árvores se balançando do lado de fora da janela e sentiu conforto no movimento.

Então, fechou os olhos.

Por lá ficou, o corpo velho e cansado.
E Marta não olhou para trás.

19.2.12

Bagagem

Quando Tatiana surgiu no começo da rua, primeiro vi um ponto verde em meio ao intenso branco da neve e, depois, fui distinguindo seu velho gorro em forma de sapo. Antes mesmo que ela alcançasse o quintal de minha casa, vesti o casaco e saí correndo pela porta da frente, deixando-a aberta (para desgosto de minha mãe).

- Oi - parei a mais ou menos 1 metro dela e sorri, ofegante.

Ela parou de caminhar e lançou um olhar grave. Meu coração acelerou.

- Oi - respondeu, timidamente.

Havia dois dias que eu esperava ansiosamente por aquela visita. Na verdade, não sabia realmente se haveria uma visita. Talvez fosse um telefonema, talvez uma carta. Talvez apenas um e-mail. Talvez até mesmo nada. Mas depois de 48 horas de pura agonia e especulação, lá estava ela, olhando diretamente para mim.

- Você... er... leu minha carta? - perguntei, depois de alguns longos segundos de silêncio.

Ela confirmou com a cabeça e abriu a boca para falar. Nada saiu.
Em instantes, seu rosto ficou muito vermelho. Ela retirou um pacotinho de pano do bolso do casaco e enfiou na minha mão. Havia um punhado de bolinhas de chocolate dentro dele.

- Eu não posso namorar até completar 18 anos. - ela disse, com a voz trêmula e o rosto ainda mais vermelho - Mas o chocolate vai ajudar você a não ficar triste. Minha mãe que disse.

Não havia chocolate no mundo que pudesse amenizar a tristeza que inundou meu peito naquele momento. Mas me forcei a sorrir e, antes que pudesse dizer alguma coisa, vi ela se virar e correr para longe.

Senti o abandono e a solidão congelarem meus ossos. Sobrou apenas neve e tudo ficou branco. Um branco puro, limpo e claro. Tão claro que fazia doer os olhos.

Por isso, demorei até conseguir visualizar o rosto de Alex no fim do corredor. O vestido branco refletia o belo Sol de primavera e balançava com leveza ao ritmo da brisa. A marcha nupcial soou bonita e imponente. Todas as cabeças estavam voltadas para ela, enquanto caminhava lentamente sob murmúrios de elogio e admiração. Alex era adorada por cada dos presentes, inclusive entre os meus convidados.

Quando nossos olhares se encontraram, meu coração ficou morno e calmo. Havia nela tudo o que eu poderia desejar em uma mulher: beleza, inteligência, bom humor, sinceridade. A mesma mulher por quem chorei e senti raiva dezenas de vezes. Ela, que me magoou em diversas discussões e acabou com cada gota de orgulho que eu possuía. Mesmo assim, não havia dúvidas: Alex era a mulher da minha vida.

De repente, eu não me sentia nervoso ou ansioso. Não sentia absolutamente nada além de tranquilidade e alegria

Quanto a Tatiana, ouvi uma única notícia sobre ela depois daquele episódio em minha rua. Tínhamos 16 anos e já não estudávamos na mesma escola. Ela havia fugido com um namorado e a vizinhança toda ficou aflita. Na noite em que ouvi a notícia, pensei em Paula, minha nova paixão, com a certeza tola de que ela nunca me machucaria.