4.1.10

O próximo bolo

Alguém bateu na porta de madeira duas vezes, de uma forma monótona e contida. Entre, disse Um. O Outro entrou, o pedido de desculpas em uma mão e nada mais. Olá, disse o Outro. Olá, disse Um. Os dois se olharam por alguns segundos infinitos.
Não havia exatamente um motivo concreto, todo entendido por ambas as partes. Alguém admitiu que era culpado, teve aquele que concordou, gerou briga, levou a palavras que não se podia pronunciar. Quem diria que estariam ali agora? Um se mexeu de incômodo, orgulhoso demais para continuar a conversa. O Outro estava tão perdido que ensaiou a expressão de tristeza.
Assim não vamos a nenhum lugar, disse Um. O Outro não entendeu, mas balançou a cabeça concordando. Você sabe por que estou assim?, perguntou Um. Eu comi sua parte do bolo, respondeu o Outro, tentando a voz mais suave que podia. Não, disse Um e agora estava com a cara fechada. Então?, perguntou o Outro, e Um não respondeu. Você não entende nada mesmo, disse Um depois da pausa e nada mais foi dito.
O Outro estava com medo de falar, porque geralmente estava errado. Um tinha raiva de que o Outro não dissesse nada por não saber, porque deveria saber e ele nunca sabia. Não era nada por causa do bolo, era o que ele simbolizava. E o Outro não entendia nada disso, porque geralmente só via o bolo, que sempre lhe parecia pouco demais para virar briga.
Me desculpe, disse o Outro. Um estava irredutível, decidido a morrer pela sua causa. Vá embora, disse Um. O Outro foi, porque sabia que naquele ponto nada mais poderia ser dito. Um o viu ir pelas costas e, sozinho, percebeu que não lhe restava nada senão chorar.

Na manhã seguinte Um sorria porque não queria mais chorar pelas coisas que já nem eram tão importantes e o Outro sabia que mais cedo ou mais tarde, o próximo bolo viria.

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